terça-feira, 4 de agosto de 2009
Tratar desigualmente os desiguais é justo
Basta olhar para os Estados Unidos e ver quantos negros há ali em posições de destaque, nas empresas, universidades e governos. Na comparação, nós tomamos de goleada. Até quando vamos conviver com isso?
O presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, decidu negar o pedido do Democratas para suspender imediatamente as cotas raciais na Universidade de Brasília. O ministro fez notar na decisão que o sistema já vige há algum tempo — e não seria o caso de simplesmente interrompê-lo. A discussão sobre cotas é boa e necessária, e o tribunal certamente a fará no momento oportuno. Entretanto, dada a delicadeza do tema e as sensibilidades que desperta, desejável será que o julgamento do STF culmine um processo de sedimentação na sociedade. O que aliás tem sido hábito na Suprema Corte.
Sem a necessidade da urgência, Gilmar Mendes poderia ter optado por emitir uma decisão sintética. Mas, felizmente para a discussão, ele foi além, incursionou em questões relativas ao mérito para, no fim, alinhavar algumas dúvidas razoáveis. Pergunta o presidente do tribunal: “Em relação ao ensino superior, o sistema de cotas raciais se apresenta como o mais adequado ao fim pretendido? As ações afirmativas raciais que conjuguem o critério econômico serão mais eficazes? Cotas baseadas unicamente na renda familiar ou apenas para os egressos do ensino público atingiriam o mesmo fim de forma mais igualitária? Quais os critérios mais adequados para as peculiaridades da realidade brasileira?”.
São boas linhas para a polêmica. Há entretanto uma preliminar. É justo a lei tratar desigualmente os desiguais? Na decisão, fala o ministro: “(...) toda igualdade de direito tem por consequência uma desigualdade de fato, e toda desigualdade de fato tem como pressuposto uma desigualdade de direito (...). Assim, o mandamento constitucional de reconhecimento e proteção igual das diferenças impõe um tratamento desigual por parte da lei. O paradoxo da igualdade, portanto, suscita problemas dos mais complexos para o exame da constitucionalidade das ações afirmativas em sociedades plurais”.
Cristalino. Assim, vão ao arquivo os argumentos que desqualificam a priori as cotas como “não republicanas”, por supostamente legitimarem a desigualdade. Não. Numa sociedade desigual (e a nossa é campeã nisso), a lei precisa tratar diferentemente os diferentes em algumas situações, para ajudar a equalizar seus direitos. A alíquota do Imposto de Renda cresce conforme sobe a renda do contribuinte, os idosos têm privilégios no transporte coletivo e os portadores de necessidades especiais têm vagas garantidas para estacionar. Tudo muito constitucional.
Superada então essa etapa, pode-se ir ao mérito. O que é melhor: cotas raciais ou cotas sociais? Ou um sistema misto? Como colunista em cima do muro não pega bem, adianto aqui minha posição até o momento. Sou favorável a um sistema misto de cotas sociais e raciais nas universidades públicas. Um modelo “social” puro não enfrentará o abismo racial brasileiro. Mas um modelo “racial” puro terá como efeito abrir as portas do ensino superior gratuito apenas para a camada socialmente mais favorecida do grupo que se pretende ajudar. Os negros pobres continuarão marginalizados.
Outros detalhes importantes. O sistema de cotas talvez devesse ser obrigatoriamente transitório, com prazo de vigência, pois trata-se de política compensatória, cujo objetivo é tornar-se desnecessária. Deveria também ser adicional. Os cotistas ocupariam vagas novas criadas pelo governo federal (ou estadual, se for o caso). Para não atingir direitos dos que estão fora das cotas. E deveriam ser declinantes no tempo, exatamente para serem eliminadas de forma suave e progressiva. Esse tempo poderia ser bastante longo, não importa. Valeria o princípio.
São algumas ideias. Deve haver outras bem melhores. Mais importante, porém, será buscar no debate um centro, uma referência moderada. Pois as posições extremas, radicalizadas, conduzirão ao impasse e ao imobilismo. Um exemplo é o Estatuto da Igualdade Racial que tramita no Congresso. Aprovado do jeito que está, correrá o sério risco de cair no Supremo, por inconstitucional. Do outro lado, a negação absoluta das políticas de ação afirmativa vinculadas à cor da pele ignoram que o Brasil tem uma dívida com os negros. E que nosso racismo é pior até do que o norte-americano.
Basta olhar para o vizinho do norte e ver quantos negros há ali em posições de destaque, nas empresas, universidades e governos. Na comparação, nós tomamos de goleada. Até quando vamos conviver com isso?
Coluna (Nas entrelinhas) publicada hoje no Correio Braziliense.
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