sexta-feira, 21 de agosto de 2009
Cidades Literárias: Clarice Lispector
A história de hoje é com Clarice e Brasília. Só que envolve uma dúvida, para a qual eu peço a ajuda de vocês. Eu recebi o texto abaixo de uma amiga, por e-mail, atribuído à Clarice. Gostei muito e tem realmente o jeito dela. Mas eu não sei (nem a amiga, porque eu perguntei pra ela), qual a fonte do texto. Em que livro foi publicado, ou se foi uma crônica de jornal, quando ou qual o título. Assim, se algum de vocês tiver essa informação, eu agradeço que partilhem conosco. Hoje eu não vou fazer nenhuma outra consideração sobre o texto, vou deixar vocês lerem e darem sua opinião, eu tenho lá as minhas… A gente vai trocando impressões nos comentários.
Update: consultando o oráculo, vi que a autoria é mesmo dela, Clarice Lispector, e que a crônica foi publicada em 1962, portanto, quando Brasília estava recém-inaugurada. Só ainda não sei onde foi a publicação. O pedido de ajuda continua de pé.
Update 2: A Monix salvou a pátria: o livro em que consta essa crônica é o Visões do Esplendor, e parece que está esgotado. Mas fica aí a referência. Valeu, Monix!
“Brasília é construída na linha do horizonte. Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades.
Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas se digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.
(…) Brasília foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construções com espaço calculado para as nuvens. O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é uma manchete nos jornais.
(…) Todo um lado de frieza humana que eu tenho, encontro em mim aqui em Brasília, e floresce gélido, potente, força gelada da Natureza. Aqui é o lugar onde os meus crimes (não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de amor. Vou embora para os meus outros crimes, os que Deus e eu compreendemos. Mas sei que voltarei. Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim. Nunca vi nada igual no mundo.
(…) Se tirasse meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia só sairia a paisagem. Cadê as girafas de Brasília? É urgente. Se não for povoada, ou melhor, superpovoada, uma outra coisa vai habitá-la. E se acontecer, será tarde demais: não haverá lugar para pessoas. Elas se sentirão tacitamente expulsas.
A alma aqui não faz sombra no chão.
Por mais perto que se esteja, tudo aqui é visto de longe. (…) A cidade de Brasília fica fora da cidade.
Essa beleza assustadora, esta cidade traçada no ar. Por enquanto não pode nascer samba em Brasília. Brasília não me deixa ficar cansada. Persegue um pouco. Bem-disposta, bem-disposta, bem-disposta, sinto-me bem. E afinal sempre cultivei meu cansaço, como a minha mais rica passividade. Tudo isso é hoje apenas. Só Deus sabe o que acontecerá com Brasília. É que o acaso aqui é abrupto.
Brasília é mal-assombrada. É o perfil imóvel de uma coisa. De minha insônia olho pela janela do hotel às três horas da madrugada. Brasília é paisagem da insônia. Nunca adormece. Aqui o ser orgânico não se deteriora. Petrifica-se. Eu queria ver espalhadas por Brasília 500 mil águias do mais negro ônix.
Brasília é assexuada. O primeiro instante de ver é como certo instante da embriaguez: os pés não tocam na terra. Como a gente respira fundo em Brasília. Quem respira, começa a querer. E querer, é que não pode. Não tem. Será que vai ter? É que não estou vendo onde. (…) Se há algum crime que a humanidade ainda não cometeu, esse crime novo será aqui inaugurado. E tão pouco secreto, tão bem adequado ao planalto, que ninguém jamais saberá.
Aqui é o lugar onde o espaço mais se parece com o tempo. (…) Fazem tanta falta cavalos brancos soltos em Brasília. De noite eles seriam verdes ao luar. Eu sei o que os dois quiseram: a lentidão e o silêncio, que também é a idéia que faço da eternidade. Os dois criaram o retrato de uma cidade eterna.
Há alguma coisa aqui que me dá medo. Quando eu descobrir o que me assusta, saberei também o que amo aqui. O medo sempre me guiou para o que eu quero; e, porque eu quero, temo. Muitas vezes foi o medo quem me tomou pela mão e me levou. O medo me leva ao perigo. E tudo o que amo é arriscado.
Em Brasília estão as crateras da Lua. A beleza de Brasília são as suas estátuas invisíveis”.
Blog Urbanamente
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário