sexta-feira, 12 de julho de 2013

Manifestação sem reflexão é alienação



José Lisboa Moreira de Oliveira

Há alguns dias o nosso país está sendo palco de numerosas manifestações de pessoas, que tomam as ruas para protestar contra situações consideradas injustas. Tudo parece ter começado em São Paulo numa reação contra o aumento da passagem dos transportes coletivos. Mas aos poucos outros "ingredientes” foram sendo acrescentados ao "cardápio” das reivindicações: os escandalosos gastos com a Copa do Mundo de futebol, a volta da inflação que atinge de modo todo especial os alimentos, a corrupção política, o descaso com setores fundamentais como a saúde e a educação, e assim por diante.

A manifestação pública, o protesto, as marchas etc. são expressão de uma democracia participativa e sinal de que estamos acordados e reagindo a situações insuportáveis que causam indignação e perplexidade. Por essa razão essas manifestações são não só legítimas, mas profundamente necessárias para se garantir a efetiva democracia e o exercício da cidadania. Querer impedi-las seria o mesmo que colocar-se contra a prática democrática. O direito à manifestação e à liberdade de opinião não pode ser visto como "surto psicótico” ou "histeria coletiva”. Isso está garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e pela Constituição Federal do Brasil. Portanto, é algo normal e faz parte do jogo democrático.

Porém, isso não significa que a manifestação e o protesto por si próprios sejam suficientes para resolver os problemas de uma nação. Uma manifestação, por mais extensa e expressiva que seja, não revela necessariamente a maturidade democrática de um povo. Dependendo do caso, pode ser sinal de desespero, de crise e até mesmo de violência coletiva. Para que possam revelar-se como sinal de maturidade política os atos públicos precisam ser acompanhados de bastante reflexão e de racionalidade. Do contrário, se esvaziam e não conseguem atingir plenamente seus objetivos. Essa reflexão e essa racionalidade precisam ser cultivadas antes de tudo a nível individual. Mas precisam ser feitas também em vários espaços coletivos de nossa sociedade.

A reflexão e a racionalidade são necessárias para que se evite o risco gravíssimo de se tentar encontrar "bodes expiatórios”, ou seja, culpados para o que está acontecendo no país. Infelizmente a história e as pesquisas mostram que nesses momentos há uma tendência generalizada das multidões em buscar responsáveis, ou até um responsável pelas situações críticas. E, lamentavelmente, na maioria das vezes, "os bodes expiatórios”, que pagam o preço amargo da fúria das multidões, são pessoas inocentes que nada têm a ver com o que acontece, ou que não são as únicas responsáveis pelos males que afetam um povo ou uma nação.

O antropólogo francês René Girard tem estudado muito esse tema. No seu livro O bode expiatório (São Paulo: Paulus, 2004) ele analisa alguns aspectos da questão. Girard, antes de tudo chama a nossa atenção para o fato de que esse tipo de manifestação acontece quase sempre em períodos de crise e de enfraquecimento das instituições. A crise e o enfraquecimento das instituições "favorecem a formação de multidões, isto é, de ajuntamentos populares espontâneos, suscetíveis de substituir instituições enfraquecidas ou de exercer pressão decisiva sobre elas” (p. 19). Essa pretensão de querer substituir o papel decisivo das instituições pode levar a uma cegueira desesperada e obstinada que não admite nenhuma outra lógica a não ser a radicalidade exacerbada, terminando por levar a mobilização popular a contradições e a fazer na prática o que tanto repudia. Combate-se a injustiça com a injustiça, a violência com a violência. E isso, como mostram os fatos históricos, não leva a nada.

Um segundo elemento apontado por Girard é o fato de que nessas mobilizações as pessoas, geralmente, se recusam a avaliar a própria responsabilidade pelo que está acontecendo. Os manifestantes mais do que avaliar a si próprios "têm forçosamente a tendência de reprovar tanto a sociedade em seu conjunto, o que não os compromete com nada, como os outros indivíduos que lhes parecem particularmente nocivos por razões fáceis de desvendar. Os suspeitos são acusados de crimes de um tipo particular” (p. 22).

É importante, por exemplo, que os manifestantes sejam levados a pensar nos pequenos atos cotidianos de corrupção que normalmente praticamos. Seria bom que o estudante que participa da passeata fizesse uma autoanálise de si mesmo, para ver se não costuma, de vez em quando, apresentar um plágio como sendo trabalho de sua autoria. Que o professor manifestante pensasse na sua forma de exercer a docência. Não teria sido alguma vez um ato de corrupção? Que o funcionário público que participa das passeatas pudesse confrontar a sua forma de trabalhar e de atender o cidadão comum. Que os fanáticos torcedores, certamente muitos deles presentes nessas manifestações, pensassem no modo como se comportam nos estádios e no modo como idolatram o futebol. Que os meninos e as meninas de classe média pudessem questionar seus pais sobre o modo como tratam seus funcionários, especialmente aqueles mais simples, aqueles que lavam as latrinas de suas casas chiques. Que o trabalhador comum pudesse analisar o seu modo de se comportar na fila de ônibus, na fila do banco ou na fila do refeitório da empresa onde trabalha. Não estaria ele, algumas vezes e na prática, querendo levar vantagem em tudo? E a lista poderia se multiplicar. Se faltar isso, as manifestações terminam dando em nada. Quando tudo terminar, vamos ver que a vida continua do mesmo jeito, uma vez que a corrupção que levou o político corrupto até o Congresso Nacional está arraigada em cada um e em cada uma de nós. E se não for expurgada a corrupção que mora dentro de cada pessoa, não há como expurgá-la das instituições.

Além da reflexão individual é fundamental que as instituições (famílias, igrejas, escolas, universidades, sindicatos, ONGs etc.) também façam sua reflexão e ajudem a refletir. Não é nenhuma novidade o fato de que a família vem abdicando de sua responsabilidade educativa. As igrejas se transformaram em "supermercados da fé” e na sua grande maioria se limitam a vender "kits de salvação”, recusando-se a pensar e a educar seus fiéis para uma consciência crítica. As escolas, por várias razões, não mais educam. As universidades se transformaram em "supermercados de diplomas” e o sindicatos, quase todos pelegos, se limitam a promover shows, sorteios e bingos no dia do trabalhador. As ONGs, salvo honrosas exceções, se transformaram na forma mais fácil de embolsar o dinheiro público e de garantir boa vida para suas cúpulas.

Esta reflexão coletiva é indispensável, uma vez que a corrupção dos indivíduos é alimentada pela corrupção das instituições. Se, por um lado, os indivíduos corruptos favorecem as instituições corruptas, por outro as instituições corruptas criam estruturas e ambientes que induzem à corrupção individual. E, lamentavelmente, em momentos como esses de mobilizações coletivas a instituição, seja ela qual for, ao invés "de ver no microcosmo individual um reflexo ou uma imitação do nível global, ela procura no indivíduo a origem e a causa de tudo o que a fere. Real ou não, a responsabilidade das vítimas sofre o mesmo engrandecimento fantástico” (GIRARD, p. 30). Não por acaso as mobilizações que estão acontecendo no Brasil tiveram início após uma campanha maciça da grande mídia em favor da redução da maioridade penal.

Sem reflexão e sem racionalidade as manifestações, além do risco de apelar para a violência, acabam em nada e não servem para nada. Podem simplesmente, mesmo que de forma inconsciente, tornarem-se massa de manobra e de manipulação daqueles que não querem que as pessoas pensem e tenham consciência crítica. Além disso, podem penalizar vítimas inocentes e pessoas que não são as únicas responsáveis pelo que está acontecendo. "Os perseguidores acabam sempre por se convencer de que um pequeno número de indivíduos ou até mesmo um só pode tornar-se extremamente nocivo para toda a sociedade, apesar de sua relativa fraqueza [...]. A multidão tende sempre à perseguição, pois as causas naturais daquilo que a perturba, daquilo que a transforma em turba, não pode interessá-la. A multidão, por definição, procura a ação, mas não consegue agir sobre as causas naturais, procura, então, uma causa acessível e que satisfaça seu apetite de violência” (GIRARD, p. 23).

Isso ficou evidente, por exemplo, na depredação do patrimônio público praticadas por algumas pessoas durante as manifestações. Ficou evidente também na tentativa de alguns de não permitir a presença de partidos políticos nas passeatas, como se fosse possível uma democracia sem partidos e como se todos os partidos fossem iguais. Ficou evidente ainda na manifestação de ira e de agressividade contra alguns políticos que há pouco tempo assumiram o poder executivo. Girard nota com perspicácia que nas manifestações públicas tende-se a punir "o último a chegar” (p. 26-27) como se ele fosse o único responsável por tudo. Com isso esquecem-se os responsáveis que há séculos perpetuam uma situação de injustiça. No caso do Brasil, ao se enfurecer contra os políticos que no momento ocupam funções executivas, a multidão não percebe que somos vítimas de um colonialismo que já dura mais de quinhentos anos. Não se trata de absolver os atuais políticos, mas de nos darmos conta de que há um sistema secular de opressão. E se não quebrarmos essa corrente colonial, não há como resolver o problema.

Portanto, sem reflexão e sem racionalidade as manifestações correm o risco de serem alienadas, uma vez que, passada a euforia do momento, tudo volta a ser como era antes. Precisamos levar as reivindicações das ruas para o debate na família, nas igrejas, nas escolas, nas universidades, nos mais diversos grupos humanos. Não podemos nos perder na lógica perversa de separar a sociedade brasileira entre bons e maus, uma vez que dentro de cada um e de cada uma de nós mora um anjo e um demônio. O que precisamos é pensar, refletir e falar dessas coisas entre nós para termos condições de identificarmos as verdadeiras causas da corrupção e das injustiças. Se não fizermos isso corremos o risco de criarmos e punirmos inocentes que, tratados como verdadeiros "bodes expiatórios”, pagarão o preço amargo por uma situação da qual não são responsáveis. E, infelizmente, nesses momentos de agitação social a tendência é punir pessoas rotuladas e tidas como anormais pela multidão. Geralmente tais pessoas pertencem a grupos sociais e étnicos estigmatizados ou estereotipados. E "quando um grupo humano tomou o hábito de escolher suas vítimas em certa categoria social, étnica e religiosa, ele tende a lhe atribuir as doenças ou deformações que reforçariam a polarização vitimária, caso elas fossem reais” (GIRARD, p. 27). Que o digam os negros, os indígenas, os homossexuais, os membros das religiões afro-brasileiras e outras categorias de pessoas profundamente discriminadas em nosso país. Inclusive por pessoas que certamente estão participando das manifestações.

Adital

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