segunda-feira, 1 de julho de 2013

Cultura política e política cultural. (Parte 1)




Marilena Chauí


ENTRE 1989 E 1992, na cidade de São Paulo, o Partido dos Trabalhadores (PT) esteve no governo municipal que, pela primeira vez nos cinco séculos da história do país e da cidade, viu no poder um partido de esquerda de origem fortemente popular e que, nascido de movimentos sociais e sindicais, tem sido responsável por grande parte da democratização do Brasil.



O desafio

O desafio imposto pelas condições históricas (sociais e econômicas) e pelo imaginário político (fortemente conservador, na cidade de São Paulo), exigia que em cada campo de atividade governamental fossem realizados três trabalhos simultâneos: a mudança na mentalidade dos servidores públicos municipais, a definição de prioridades voltadas para as carências e demandas das classes populares e a invenção de uma nova cultura política.

Do ponto de vista administrativo, tratava-se de fazer com que os servidores públicos se considerassem cidadãos a serviço de outros cidadãos, em lugar de funcionários do aparelho estatal. Em outras palavras, tratava-se de quebrar o poderio burocrático, fundado na hierarquia, no segredo do cargo e na rotina, isto é, em práticas antidemocráticas, uma vez que a democracia funda-se na igualdade (contra a hierarquia), no direito à informação (contra o segredo) e na invenção de novos direitos segundo novas circunstâncias (contra a rotina).

Do ponto de vista das prioridades, tratava-se de definir políticas públicas para as áreas de saúde, moradia, educação, transporte, alimentação, cultura e direitos das minorias, numa cidade que recebe anualmente cerca de 150 mil migrantes pobres e, além de sofrer os efeitos da recessão reinante no país, está passando por uma mudança profunda, pois começa a deixar de ser um centro industrial para tornar-se um centro de serviços.

Do ponto de vista da cultura política, tratava-se de estimular formas de auto-organização da sociedade e sobretudo das camadas populares, criando o sentimento e a prática da cidadania participativa.

Foi sob o imperativo dessas três exigências que a Secretaria Municipal de Cultura desenvolveu um projeto cuja diretriz fundamental foi a Cidadania Cultural. Pode parecer estranho (dado o modo como correntemente se entende a cultura como lazer e entretenimento) que a natureza política do trabalho se exprimisse de maneira tão explícita e direta num projeto cultural. Para que a estranheza não permaneça, é preciso considerar as condições (e pré-condições) para propor uma política cultural no Brasil e, particularmente, em São Paulo, a mais capitalista das cidades brasileiras, na qual a lógica do mercado funciona plenamente.

O desafio apresentou-se como enfrentamento de três poderosos mecanismos que determinam as operações, funcionamentos e reproduções do imaginário social e político no Brasil: o mecanismo mitológico, o ideológico e o político.

A máquina mitológica

O grande mito que sustenta a imaginação social brasileira é o da não-violência. Nossa auto-imagem é a de um povo ordeiro e pacífico, alegre e cordial, mestiço e incapaz de discriminações étnicas, religiosas ou sociais, acolhedor para os estrangeiros, generoso para com os carentes, orgulhoso das diferenças regionais e destinado a um grande futuro.

Muitos indagarão como o mito da não-violência brasileira pode persistir sob o impacto da violência real, cotidiana, conhecida de todos e que, nos últimos tempos, é também ampliada por sua divulgação e difusão pelos meios de comunicação de massa. Ora, é justamente no modo de interpretação da violência que o mito encontra meios para conservar-se.

De fato, o primeiro mecanismo empregado para interpretar a violência é o da exclusão: afirma-se que a nação brasileira é não-violenta e que, se houver violência, esta é praticada por gente que não faz parte da nação (mesmo que tenha nascido e viva no Brasil). O mecanismo da exclusão produz a diferença entre um nós-brasileiros-não violentos e um eles-não-brasileiros-violentos. Eles não fazem parte do nós.

O segundo mecanismo é o da distinção: distingue-se o essencial e o acidental, isto é, por essência, os brasileiros não são violentos e, portanto, a violência é acidental, um acontecimento efêmero, passageiro, uma epidemia ou um surto localizado na superfície de um tempo e de um espaço definidos, superável e que deixa intacta nossa essência não-violenta.

O terceiro mecanismo é de tipo jurídico: a violência fica circunscrita ao campo da delinqüência e da criminalidade, o crime sendo definido como ataque à propriedade privada (furto, roubo e latrocínio, ou seja, roubo seguido de assassinato). Esse mecanismo permite, por um lado, determinar quem são os agentes violentos (de modo geral, os pobres) e legitimar a ação (esta sim, violenta) da polícia contra a população pobre, os negros, as crianças de rua e os favelados. A ação policial pode ser, às vezes, considerada violenta, recebendo o nome de chacina ou massacre quando, de uma só vez e sem motivo, o número de assassinados é muito elevado. No restante das vezes, porém, o assassinato policial é considerado normal e natural, uma vez que se trata de proteger o nós contra o ele.

O quarto mecanismo é de tipo sociológico: atribui-se a epidemia de violência a um momento definido do tempo, aquele no qual se realiza a transição para a modernidade das populações que migraram do campo para a cidade e das regiões mais pobres (norte e nordeste) para as mais ricas (sul e sudeste). A migração causaria o fenômeno temporário da anomia, no qual a perda das formas antigas de sociabilidade ainda não foram substituídas por novas, fazendo com que os migrantes pobres tendam a praticar atos isolados de violência que desaparecerão quando estiver completada a transição. Aqui, não só a violência é atribuída aos pobres e desadaptados, como ainda é consagrada como algo temporário ou episódico.

Finalmente, o último mecanismo é o da inversão do real, graças à produção de máscaras que permitem dissimular comportamentos, idéias e valores violentos como se fossem não-violentos. Assim, por exemplo, o machismo é colocado como proteção natural à natural fragilidade feminina; o paternalismo branco é visto como proteção para auxiliar a natural inferioridade dos negros; a repressão contra os homossexuais é considerada proteção natural aos valores sagrados da família; a destruição do meio ambiente é orgulhosamente vista como sinal de progresso e civilização etc.

Em resumo, a violência não é percebida como toda prática e toda idéia que reduza um sujeito à condição de coisa, que viole interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural. O mito da não-violência permanece porque admite-se a existência empírica da violência, mas fabricam-se explicações para denegá-la no instante mesmo em que é admitida. Mais do que isso, a sociedade não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas. Dessa maneira, a violência que estrutura e organiza as relações sociais brasileiras, por não ser percebida, é naturalizada e essa naturalização conserva a mitologia da não-violência.

A máquina ideológica

A mitologia da não-violência é o solo sobre o qual se ergue a ideologia, sob a forma das relações sociais.

Afirma-se que no Brasil, infelizmente, atravessamos periodicamente fases de autoritarismo, visto como um acontecimento referido ao regime político e ao modo de funcionamento do Estado ditatorial. Dessa maneira, dissimula-se o fundamental, isto é, que o autoritarismo não é simplesmente a forma do governo, mas a estrutura da própria sociedade brasileira. Esta é visceralmente autoritária.

Conservando as marcas da sociedade colonial escravocrata, a sociedade brasileira é fortemente hierarquizada: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação entre um superior, que manda, e um inferior, que obedece. As diferenças e assimetrias são sempre transformadas em desigualdades que reforçam a relação mando-obediência. O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade. As relações, entre os que se julgam iguais, são de cumplicidade; e, entre os que são vistos como desiguais, o relacionamento toma a forma do favor, do clientelismo, da tutela ou da cooptação, e, quando a desigualdade é muito marcada, assume a forma da opressão. Em suma: micropoderes capitalizam o autoritarismo em toda a sociedade: na família, na escola, nas relações amorosas, no trabalho, na mass midia, no comportamento social nas ruas, no tratamento dado aos cidadãos pela burocracia estatal, no desprezo do mercado pelos direitos do consumidor, na naturalidade da violência policial etc.

Podemos resumir, simplificadamente, os principais traços de nosso autoritarismo social considerando que a sociedade brasileira se caracteriza pelos seguintes aspectos: incapacidade para operar o princípio liberal da igualdade formal e para lutar pelo princípio socialista da igualdade real: as diferenças são postas como desigualdades e, estas, como inferioridade (no caso das mulheres, dos trabalhadores, dos negros, índios, migrantes, idosos) ou como monstruosidade (no caso dos homossexuais); incapacidade para operar com o princípio liberal da igualdade jurídica e para lutar contra formas de opressão social e econômica; para os grandes, a lei é privilégio; para as camadas populares, repressão. A lei não consegue figurar o pólo público do poder e da regulação dos conflitos, nunca definindo direitos e deveres dos cidadãos. Por este motivo, as leis aparecem como inócuas, inúteis ou incompreensíveis, feitas para serem transgredidas e não para serem transformadas. 

O poder judiciário surge como distante, secreto, representante dos privilégios das oligarquias e não dos direitos da generalidade social; indistinção entre o público e o privado: não apenas os governantes e parlamentares praticam a corrupção sobre os fundos públicos, mas não há a percepção social de uma esfera pública das opiniões, da sociabilidade coletiva, da rua como espaço comum, assim como não há a percepção dos direitos à privacidade e à intimidade. 

Do ponto de vista dos direitos sociais, há um encolhimento público; do ponto de vista dos interesses econômicos, um alargamento do privado, tornando a sociedade presa fácil do neoliberalismo e por ele fascinada; incapacidade para trabalhar conflitos e contradições sociais, econômicas e políticas. Conflitos e contradições são sempre considerados perigo, crise, desordem e a eles se oferece uma única resposta: a repressão policial e militar; incapacidade para criar a esfera pública da opinião como expressão dos interesses e dos direitos de grupos e classes sociais diferenciados e/ou antagônicos. 

A mass mídia monopoliza a informação e o consenso é confundido com a unanimidade, de sorte que a discordância é posta como ignorância, atraso ou ignorância; incapacidade para tolerar e fortalecer movimentos populares e sociais: a sociedade civil auto-organizada é vista como perigosa para o Estado e para o funcionamento selvagem do mercado; a naturalização das desigualdades econômicas e sociais (o salário mínimo oscila entre 20 e 60 dólares por mês, sendo considerado natural que os trabalhadores tenham dificuldades até mesmo para reproduzir-se como força de trabalho), do mesmo modo que há naturalização das diferenças étnicas como desigualdades raciais entre superiores e inferiores, das diferenças religiosas e de gênero, bem como naturalização de todas as formas visíveis e invisíveis de violência; fascínio pelos signos de prestígio e de poder: uso de títulos honoríficos sem qualquer relação com a possível pertinência de sua atribuição, o caso mais corrente sendo o uso de doutor quando, na relação social, o outro se sente ou é visto como superior, doutor é o substituto imaginário para os antigos títulos de nobreza do período colonial e da monarquia; manutenção de criadagem doméstica, cujo número indica aumento de prestígio, de status etc.

O autoritarismo está de tal modo interiorizado nos corações e nas mentes que alguém pode usar a frase "um negro muito bom porque tem a alma branca" e não ser considerado racista. Pode referir-se aos serviçais domésticos nos termos "uma criada muito boa porque conhece seu lugar" e considerar-se isento de preconceito de classe. Pode referir-se a um assalariado como "um empregado de toda confiança porque nunca rouba coisa alguma" e considerar que não existe luta de classes e que dela não participa. Pode dizer "uma mulher perfeita, pois não trocou o lar pela indignidade de trabalhar fora" e não ser considerado machista.

A desigualdade salarial entre homens e mulheres, entre brancos e negros, a exploração do trabalho infantil e dos idosos são consideradas normais. A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos miseráveis. A existência de crianças de rua é vista como "tendência natural dos pobres à criminalidade". Os acidentes de trabalho são imputados à incompetência e à ignorância dos trabalhadores. As mulheres que trabalham (se não forem professoras ou assistentes sociais) são consideradas prostitutas em potencial e as prostitutas, degeneradas, perversas e criminosas, embora, infelizmente, indispensáveis para conservar a santidade da família.

O Brasil ocupa o segundo lugar mundial nos índices de concentração da renda e de má distribuição da riqueza, mas ocupa o oitavo lugar em termos do Produto Interno Bruto. Essa desigualdade - 2% possuem 92% da renda nacional, enquanto 98% possuem 8% dessa renda - não é percebida como socialmente inaceitável, mas natural e normal. Conseqüentemente, a sociedade brasileira é oligárquica e está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes.

A ideologia autoritária, que naturaliza as desigualdades e exclusões socioeconômicas, vem exprimir-se no modo de funcionamento da política.

A máquina política

Pode-se imaginar a configuração do campo político e de suas práticas quando seu solo é a mitologia da não-violência e a ideologia autoritária.

Os partidos políticos são clubs privés das oligarquias regionais, arrebanhando a classe média em torno do imaginário autoritário (a ordem) e mantendo com os eleitores quatro tipos principais de relações: a de cooptação, a de favor e clientela, a de tutela e a da promessa salvacionista ou messiânica. Do lado da classe dominante, a política é praticada numa perspectiva naturalista-teocrática, isto é, os dirigentes são detentores do poder por direito natural e por escolha divina. Do lado das camadas populares, o imaginário político é messiânico-milenarista, correspondendo à auto-imagem dos dirigentes. Como conseqüência, a política não consegue configurar-se como campo social de lutas, mas tende a passar para o plano da representação teológica, oscilando entre a sacralização e adoração do bom-governante e a satanização e execração do mau-governante.

O Estado é percebido apenas sob a face do poder executivo, os poderes legislativo e judiciário ficando reduzidos ao sentimento de que o primeiro é corrupto e o segundo, injusto. Nenhuma das funções estatais, portanto, é conhecida. A identificação entre o Estado e o executivo, a ausência de um legislativo confiável e o medo do judiciário, somados à ideologia do autoritarismo social e ao imaginário teológico-político levam ao desejo permanente de um Estado forte para a salvação nacional. Por seu turno, o Estado percebe a sociedade civil como inimiga e perigosa, bloqueando as iniciativas dos movimentos sociais, sindicais e populares.

Nestas condições, é possível compreender a dificuldade gigantesca para a instituição da democracia. Dentre as dificuldades, destacamos, aqui, as que nos parecem mais fortes: a estrutura oligárquica dos partidos políticos e seu funcionamento, impedindo a idéia e a prática da representação e da participação; a estrutura fortemente burocratizada do Estado e, portanto, como observamos no início, a existência de um poder burocrático cuja natureza é essencialmente antidemocrática; a estrutura da sociedade, fundada na polarização extrema entre a carência e o privilégio. Uma carência, por definição, é sempre particular e específica, não conseguindo se generalizar num interesse nem, muito menos, se universalizar num direito. Um privilégio, por definição, não pode se generalizar num interesse comum nem se universalizar num direito, sob a pena de desfazer-se como privilégio. Ora, a democracia é a criação, reconhecimento e garantia de direitos, de sorte que a estrutura da sociedade brasileira impede sua emergência.

Acrescentamos a essas três dificuldades, a presença crescente do neoliberalismo com suas duas marcas principais: do lado da economia, uma acumulação do capital que não necessita incorporar mais pessoas ao mercado de trabalho e de consumo, operando com o desemprego estrutural; do lado da política, a privatização do público, isto é, o abandono das políticas sociais por parte do Estado. No caso do Brasil, o neoliberalismo significa levar ao extremo a polarização carência-privilégio, a exclusão sócio-política das camadas populares, a desorganização da sociedade civil como massa dos desempregados, a natureza oligárquica e teológica da política, o autoritarismo social e o bloqueio à democracia. Um dos efeitos mais terríveis do neoliberalismo brasileiro tem sido o esfacelamento dos movimentos sociais e populares que foram os grandes sujeitos históricos e políticos dos anos 70 e 80.

Estud. av. vol.9 no.23 São Paulo Jan./Apr. 1995


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