segunda-feira, 1 de julho de 2013

O mito fundador, em Cultura política e política cultural.(2)

O Desejado”



Cultura política e política cultural.
Parte 2

Marilena Chauí


O mito fundador

Os traços que esboçamos acima são determinados na estrutura econômica e social do Brasil. Todavia, para além (ou, talvez, aquém) dessas condições materiais, dando-lhes sustentação imaginária, encontra-se algo próximo e remoto, permanentemente reatualizado sob a variação contínua da mitologia da não-violência e da ideologia autoritária. Trata-se do mito fundador.


Fundador, no sentido da antiga idéia romana da fundatio, ou seja, da construção da origem e de sua ligação perpétua com o presente, dando-lhe forma e sentido. Mito em duas acepções: na antropológica (solução imaginária de tensões e conflitos que não podem ser resolvidos no real) e na psicanalítica (construção imaginária que recalca os conflitos para poder repeti-los incessantemente sob a forma de sintomas).

De Cristóvão Colombo, Vespúcio, Pero Vaz de Caminha ao Padre Vieira (no século XVII), dos Inconfidentes Mineiros (século XVIII) às revoltas populares do século XIX (Canudos, Pedra Bonita), do Estado Novo (ditadura fascista dos anos 30 e 40) à Nova Repúbüca (1985) e Fernando Collor de Mello (1990), o mito fundador não cessou de repor-se em vestes novas.

Quando lemos os diários de viagem e as cartas de Colombo ou Vaz de Caminha ou as obras políticas do Padre Vieira, um traço lhes é comum: a América, primeiro, e o Brasil, depois, não são propriamente descobertos, mas encontrados. Já estavam lá e já estavam acabados na mente de navegantes e evangelizadores. De que modo já estava, lá? Como livro ou texto? Os textos antigos de Virgílio e Plínio, o Jovem, os do cardeal medieval Pierre d'Ailly, as lendas e oráculos celtas, as profecias de Isaías e Daniel e as obras profético-milenaristas do abade Joaquim de Fiori já haviam descrito, com profusão de detalhes o Paraíso Terrestre, situado, pelo livro da Gênese, no Oriente. 

Essa literatura, constituída por um conjunto de lugares-comuns clássicos e bíblicos, produz a imagem do Jardim do Éden: cortado por quatro rios que atravessam a Terra, pelos quais correm leite e mel e cujos leitos estão recobertos de ouro, prata, pérolas, safiras e rubis; cercado por altíssimas montanhas, cobertas de esmeraldas e turmalinas; vegetação luxuriante, flora e fauna exuberantes e exóticas, mares serenos, céus de puro anil e com estrelas desconhecidas, temperatura sempre amena (nem muito quente, nem muito frio, repete a literatura), habitado por gente bela, indômita e inocente como no dia da criação; primavera eterna, renovação cósmica perpétua. É assim que navegantes e missionários descrevem a América e o Brasil. Não podem vê-los, mas já os conhecem: o olhar busca apenas comprovação empírica para o já sabido, porque escrito. Não descrevem: realizam exegeses.

Se navegantes e missionários insistem em que estão no Oriente e no mundo novo é porque essas duas marcas desenham o Paraíso Terrestre e confirmam as profecias bíblicas. Além disso, Joaquim de Fiori profetizara que da Espanha sairia o Imperador dos Últimos Dias, que venceria o Anti-Cristo (os mouros) e prepararia o caminho para a Segunda Vinda de Cristo, dando início ao Reino de Mil Anos de felicidade e abundância, antes da ressurreição dos mortos e do Juízo Final, de modo que Colombo escreverá aos reis assegurando-lhes que "foram cumpridas as profecias de Daniel e Isaías, tal como profetizara o abade Joaquim". Na História do Futuro, o mesmo topos é repetido por Vieira, mas, agora, o Imperador dos Últimos Dias é o Encoberto e o Encantado do trovador Bandarra, isto é, El Rei Don Sebastião, com quem começará o Quinto Império do mundo, a Jerusalém Celeste. O signo profético decisivo para Vieira é o norte do Brasil: o jesuíta o decifra a partir das profecias de Isaías, lidas como descrição minuciosa e detalhada do Brasil.

As raízes de nosso mito fundador encontram-se fincadas nos primeiros textos dos viajantes e evangelizadores, dando-lhe conteúdo profético-milenarista. Ora, a literatura antiga e medieval que serve de base aos descobridores refere-se ao Paraíso Terrestre como jardim e, dessa maneira, os novos textos colocam a nova terra sob o signo da Natureza e não sob o da Historia e da Cultura. Quando o tempo aparece, surge sob o signo da história providencial do plano divino e do milênio, portanto, como teofania, epifania e história sagrada. Esta, faz do tempo instrumento da eternidade e, portanto, deixa-nos tão fora da história quanto a natureza paradisíaca.

Essa matriz mítica é decisiva para a elaboração do imaginário brasileiro e da auto-imagem do Brasil. Antes de mais nada, como todos sabem, "o Brasil é um dom de Deus aos homens", demonstrado pela ausência de violência natural -não temos vulcões, terremotos, maremotos, tufões nem desertos (há 500 anos isso é repetido) - e pela clemência primaveril da natureza - nosso Hino Nacional refere-se ao país como "florão da América" cujos céus "tem mais estrelas" e cujos "bosques tem mais flores". Nas escolas, as crianças aprendem o significado das quatro cores de nossa bandeira: o verde, nossas luxuriantes florestas; o amarelo, nossas inesgotáveis riquezas minerais; o azul, nosso céu de anil onde brilha o símbolo de nossa eleição divina, o Cruzeiro do Sul; o branco, a paz e a ordem (com progresso) de um povo varonil, justo, generoso, cordial, pacífico e ordeiro. Somos o bom-selvagem, por natureza e por divina providência, pois, somos herdeiros da inocência dos nativos do Paraíso (ainda que os tenhamos dizimado num genocídio sistemático).

Estamos, profeticamente, destinados à grandeza do futuro, pois, nascido sob o signo do milênio, "o Brasil é o país do futuro", pelo qual não precisamos lutar porque nos está prometido desde o começo do mundo.

Eis porque violência e autoritarismo não encontram meios para serem percebidos e superados: não existem porque não podem existir. Eis também porque a política se realiza sob o signo da teofania e da teologia política, uma vez que o tempo nacional é epifânico e milenarista. Do lado dos dominantes, a teologia política manifesta-se numa visão populista-teocrática do poder - o governante representa a vontade divina e não os governados que são usados, através do voto, como instrumentos de Deus na escolha dos dirigentes. Do lado dos dominados, a religião torna-se o único meio de acesso ao político que, por isso, é interpretado sob a forma messiânica - sacralizando o poder - ou sob a forma do flagelo -satanizando o poder.

Estud. av. vol.9 no.23 São Paulo Jan./Apr. 1995

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