Por Luiz Gonzaga Belluzzo
Leio Robert Fisk há anos. Em suas reportagens no jornal britânico The Independent, Fisk, quase diariamente presta testemunho de sua fidelidade ao bom jornalismo, aquele inspirado nos valores liberais que hoje correm o risco de naufragar diante da brutalidade dos interesses.
Correspondente no Oriente Médio, Fisk ganhou o respeito de todos os grupos políticos e religiosos da região, graças a seu distanciamento e à busca permanente da compreensão, sem renunciar ao direito de julgar e opinar e, portanto, de revelar os valores que constituem sua biografia.
Em seu último artigo, o jornalista cuidou de avaliar as consequências da morte de Bin Laden. Ele não descarta o risco de possíveis retaliações dos grupos islâmicos com o propósito de vingar o “martírio” de Osama. O problema maior, no entanto, deita raízes na natureza profundamente perturbadora da “guerra ao terror”. Travado à sombra do Patriot Act e da prisão de Guantánamo, o combate ao terror, diz Fisk, acentuou o descompasso entre os clamores ocidentais pela legalidade e pela não violência no Oriente Médio e a lição oposta oferecida ao povo da região: executar seus oponentes é perfeitamente aceitável.
Jornalistas como Fisk tornam-se avis raras no mundo midiático. Nessa esfera da existência, o padrão dominante é o do julgamento sumário e fulminante, como o comentário sobre a morte de Bin Laden prolatado por Geraldo Rivera da Fox News: “Uma vitória maiúscula foi alcançada pelos good guys contra o pior entre os bad guys”. Sem uma réstia de ironia, sou obrigado a reconhecer que, em sua grotesca simplicidade, essa pérola do pensamento contemporâneo é menos danosa para as autoalegadas virtudes do Ocidente do que a assustadora promoção da tortura como instrumento aceitável para se obterem confissões dos prisioneiros.
Entre as celebrações da morte de Bin Laden, o bad guy, congressistas americanos cuidaram de declarar seu apoio aos métodos utilizados nos interrogatórios de Guantánamo, entre eles o “afogamento”. O deputado republicano Peter King afirmou: “Obtivemos informações vitais sobre o paradeiro de Obama (sic) através do ‘afogamento’. E, assim, dizer que o afogamento não funciona e jamais deveria ser utilizado, é equivocado… obtivemos informações importantes para localizar Bin Laden”. O diretor da CIA, Leo Panetta, foi direto ao ponto: “Nós torturamos algumas pessoas, mas obtivemos as informações mais tarde. Pode haver uma conexão (entre a tortura e a obtenção das informações), mas nunca saberemos”.
(Posso garantir que o inglês das frases do congressista e do diretor da CIA é um tanto pior do que minha tradução para o português.) Seja como for, o episódio Bin Laden e a autocongratulação dos amigos da tortura revelam que a guerra ao terror, além dos bad guys, conseguiu derrotar a hipocrisia, essa virtude que Norberto Elias considerava indispensável para o avanço do processo civilizador.
É muito cômodo atribuir a indivíduos a responsabilidade (ou a culpa?) pela defesa descarada dos métodos de interrogatório que afrontam os princípios elementares da democracia e do Estado de Direito, as ditas conquistas da civilização Ocidental. Se os indivíduos ganham coragem para rasgar o véu da hipocrisia, não há como escapar da conclusão de que assistimos à formação de um “outro” consenso nas camadas importantes da sociedade em torno dos “novos” valores, agora com os trajes do individualismo narcisista nascido do “destino manifesto”.
Na ordem americana, o princípio da universalidade da lei foi substituído pela exigência de respeito à moral particularista, idiossincrática e assimétrica. O direito, dizia Hegel, enquanto existência da liberdade, é uma determinação essencial na refrega contra a “boa intenção” moral. “O desenvolvimento da sociedade moderna exige a formalidade jurídica e os protestos contra esse desenvolvimento são… reminiscências do ‘estado bruto de natureza’ que revelam um apego doentio à própria particularidade, narcisisticamente desfrutada como moral.”
Não faltará quem pretenda acusar de “antiamericanismo” os que hoje resistem e se opõem aos episódios de reafirmação do poder americano. Tratar assim uma questão tão grave e decisiva para o futuro da vida decente neste planeta é inaceitável. É uma forma de “misturar estação” com o propósito de interditar o exame crítico de qualquer processo político, além de desfigurar o debate racional sobre os conflitos contemporâneos, transfigurado numa guerra de preconceitos travada nos esgotos da alma humana. Eram bons os tempos em que a fala do poder ainda exigia os subterfúgios do cinismo.
Leio Robert Fisk há anos. Em suas reportagens no jornal britânico The Independent, Fisk, quase diariamente presta testemunho de sua fidelidade ao bom jornalismo, aquele inspirado nos valores liberais que hoje correm o risco de naufragar diante da brutalidade dos interesses.
Correspondente no Oriente Médio, Fisk ganhou o respeito de todos os grupos políticos e religiosos da região, graças a seu distanciamento e à busca permanente da compreensão, sem renunciar ao direito de julgar e opinar e, portanto, de revelar os valores que constituem sua biografia.
Em seu último artigo, o jornalista cuidou de avaliar as consequências da morte de Bin Laden. Ele não descarta o risco de possíveis retaliações dos grupos islâmicos com o propósito de vingar o “martírio” de Osama. O problema maior, no entanto, deita raízes na natureza profundamente perturbadora da “guerra ao terror”. Travado à sombra do Patriot Act e da prisão de Guantánamo, o combate ao terror, diz Fisk, acentuou o descompasso entre os clamores ocidentais pela legalidade e pela não violência no Oriente Médio e a lição oposta oferecida ao povo da região: executar seus oponentes é perfeitamente aceitável.
Jornalistas como Fisk tornam-se avis raras no mundo midiático. Nessa esfera da existência, o padrão dominante é o do julgamento sumário e fulminante, como o comentário sobre a morte de Bin Laden prolatado por Geraldo Rivera da Fox News: “Uma vitória maiúscula foi alcançada pelos good guys contra o pior entre os bad guys”. Sem uma réstia de ironia, sou obrigado a reconhecer que, em sua grotesca simplicidade, essa pérola do pensamento contemporâneo é menos danosa para as autoalegadas virtudes do Ocidente do que a assustadora promoção da tortura como instrumento aceitável para se obterem confissões dos prisioneiros.
Entre as celebrações da morte de Bin Laden, o bad guy, congressistas americanos cuidaram de declarar seu apoio aos métodos utilizados nos interrogatórios de Guantánamo, entre eles o “afogamento”. O deputado republicano Peter King afirmou: “Obtivemos informações vitais sobre o paradeiro de Obama (sic) através do ‘afogamento’. E, assim, dizer que o afogamento não funciona e jamais deveria ser utilizado, é equivocado… obtivemos informações importantes para localizar Bin Laden”. O diretor da CIA, Leo Panetta, foi direto ao ponto: “Nós torturamos algumas pessoas, mas obtivemos as informações mais tarde. Pode haver uma conexão (entre a tortura e a obtenção das informações), mas nunca saberemos”.
(Posso garantir que o inglês das frases do congressista e do diretor da CIA é um tanto pior do que minha tradução para o português.) Seja como for, o episódio Bin Laden e a autocongratulação dos amigos da tortura revelam que a guerra ao terror, além dos bad guys, conseguiu derrotar a hipocrisia, essa virtude que Norberto Elias considerava indispensável para o avanço do processo civilizador.
É muito cômodo atribuir a indivíduos a responsabilidade (ou a culpa?) pela defesa descarada dos métodos de interrogatório que afrontam os princípios elementares da democracia e do Estado de Direito, as ditas conquistas da civilização Ocidental. Se os indivíduos ganham coragem para rasgar o véu da hipocrisia, não há como escapar da conclusão de que assistimos à formação de um “outro” consenso nas camadas importantes da sociedade em torno dos “novos” valores, agora com os trajes do individualismo narcisista nascido do “destino manifesto”.
Na ordem americana, o princípio da universalidade da lei foi substituído pela exigência de respeito à moral particularista, idiossincrática e assimétrica. O direito, dizia Hegel, enquanto existência da liberdade, é uma determinação essencial na refrega contra a “boa intenção” moral. “O desenvolvimento da sociedade moderna exige a formalidade jurídica e os protestos contra esse desenvolvimento são… reminiscências do ‘estado bruto de natureza’ que revelam um apego doentio à própria particularidade, narcisisticamente desfrutada como moral.”
Não faltará quem pretenda acusar de “antiamericanismo” os que hoje resistem e se opõem aos episódios de reafirmação do poder americano. Tratar assim uma questão tão grave e decisiva para o futuro da vida decente neste planeta é inaceitável. É uma forma de “misturar estação” com o propósito de interditar o exame crítico de qualquer processo político, além de desfigurar o debate racional sobre os conflitos contemporâneos, transfigurado numa guerra de preconceitos travada nos esgotos da alma humana. Eram bons os tempos em que a fala do poder ainda exigia os subterfúgios do cinismo.
Miro
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