Como eles rasgam a Constituição
Estratégia de promotores paulistas para anular liberdade de expressão é semelhante à de advogados de porta de presídio
Por Antonio Martins
No jargão jurídico, chama-se chicaneiro ao advogado que, por carecer de saberes, talento ou uma boa causa, vale-se de trapaças para evitar que se revele a precariedade de seus argumentos, ou o absurdo de seus interesses. Não é possível evitar o termo – chicaneiros– para qualificar os promotores públicos de São Paulo que obtiveram do Tribunal de Justiça, nesta sexta-feira (27/5), a “proibição” da Marcha da Liberdade.
Eles sabem que seus argumentos são insustentáveis. Não têm coragem de encarar um debate jurídico sobre o mérito da proibição que propõem. Converteram-se em personagem similares aos “advogados de porta de cadeia”. São os promotores especializados em obter “decisões às tardes de sexta-feira”.
A Constituição Federal consagra, no artigo 5º, a “livre manifestação de pensamento” e de “atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Não se trata, é claro, de um princípio absoluto. Leis específicas punem o uso de tal regalia para ferir direitos humanos, cercear a liberdade de outros ou cometer um delito qualquer.
Encastelados no Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público de São Paulo, alguns promotores têm se servido de um tipo especial de chicana para atentar contra a liberdade de expressão. Entre eles, destacam-se os doutores Marcelo Luís Barone e Walter Tabet Filho.
Contra o crime organizado, o Gaeco não parece conseguir grande coisa. São Paulo é o único Estado em que uma facção criminosa, o PCC, foi capaz de zombar da polícia e promover, em 2006, uma série de assassinatos que paralisou a capital. Os promotores preferem voltar sua “valentia” contra gente com menos poder. Um de seus alvos prediletos é a Marcha da Maconha.
Em todo o mundo, promovem-se, ano a ano, manifestações contra a política de criminalização de algumas drogas, recomendada numa convenção da ONU de 1961.
Organizadas a partir da virada do século, as marchas realizam-se atualmente por mais de 200 cidades. No Brasil, a maior parte dos Estados as autoriza. A lei proíbe usar substâncias proscritas mas, evidentemente, a Constituição autoriza a questionar a proibição. Marco Magri, um dos organizadores da Marcha da Maconha em São Paulo , lembra que graças ao direito de propor a mudança das leis temos, hoje, a união homoafetiva ou… as eleições diretas para presidente de República!
O Gaeco, contudo, quer transformar a legislação em algo eterno – e não se envergonha de apelar para a violência policial. O grupo de promotores especializou-se em driblar o Judiciário. Todos os anos, os promotores da Marcha da Maconha procuram abrir o debate – tanto entre a sociedade, quanto na Justiça. Protocolam pedidos preventivos de habeas corpus, para que seja assegurado o direito de expressão. Obtêm invariavelmente decisões favoráveis. O Gaeco permanece calado.
Prefere recorrer ao Tribunal de Justiça (TJ). Alega que a Marcha promove a apologia ao crime. Como não é capaz de sustentar esta afirmação, serve-se de um trambique. Age nas tardes de sexta-feira. Vulgariza o uso da liminar. Por meio deste instrumento, pode-se requerer que o juiz impeça, em caráter de emergência, a violação de direito supostamente ameaçado – antes de analisar em detalhes o pedido.
O Gaeco nunca age com antecedência. Ele sabe que será derrotado, se a outra parte tiver condições de exercer o direito ao “contraditório” – ou seja, a expressar posição divergente. O grupo também calcula que, uma vez desmobilizada a Marcha, será difícil rearticulá-la em pouco tempo. Em 2011, pela primeira vez, as coisas não são tão fáceis. Reprimida a Marcha da Maconha, em 21/5, articulou-se rapidamente a Marcha da Liberdade, para este sábado (28). Os promotores apelaram ainda assim – e contaram com uma decisão do desembargador Paulo Rossi, do TJ.
Quando puderem examinar o mérito da questão, tanto a sociedade quanto a Justiça poderão ir além das chicanas. Verificarão, por exemplo, que cerca de 100 mil brasileiros são encarcerados a cada ano, por porte de drogas consideradas ilícitas. A maior parte não tem antecedentes criminais e possuía, no momento da abordagem pela polícia, pequenas quantidades da substância. Ainda assim, são afastados da família e do trabalho e atirados .em presídios superlotados, degradantes e que cumprem, na prática, papel oposto a sua finalidade precípua: recuperar para o convívio social aqueles que cometeram crimes.
Nada indica que tal política seja capaz, sequer, de promover os resultados limitados a que se propõe: reduzir o consumo de substâncias psicoativas. Usa-se maconha, cocaína, ecstasy ou crack em ambientes frequentados por todas as classes sociais. O comércio alimenta redes de traficantes, que se servem da “reserva de mercado” conferida pela lei para se espalhar por todo o país. Sua ação, combinada muitas vezes com a violência e corrupção da polícia, inferniza as periferias das metrópoles, submetendo-as ao que Boaventura dos Santos chama de “fascismo social”. O binômio proibição-consumo clandestino constitui trágica hipocrisia coletiva, que castiga a sociedade brasileira.
A insensibilidade dos promotores do Gaeco, porém, parece não conhecer limites. Além de atentar contra a liberdade de expressão, o doutor Marcelo Luís Barone é conhecido por outro episódio bizarro. Em março de 2006, ele defendeu a prisão da adolescente Angélica de Sousa Teodoro – que, para alimentar o filho recém-nascido, entrou num supermercado de São Paulo e escondeu, sob o boné, um pote de manteiga. Meses depois, a seccional São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) considerou “absurda” a postura da autoridade.
Mas em São Paulo , a liberdade de expressão continua à mercê de um Tribunal de Justiça que se tornou refém dos promotores chicaneiros.
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