Erundina: “desprivatizar as metrópoles brasileiras”
Abriu-se nesta quinta-feira, em São Paulo , uma nova etapa de uma das lutas sociais que marcou o primeiro semestre. Depois de promover, ao longo de muitas semanas, manifestações seguidas contra o aumento da tarifa de ônibus (de R$ 2,70 para R$ 3), o Movimento Passe Livre decidiu aprofundar o debate sobre o tipo de cidade que quer ajudar a construir – e lançou, na USP, a campanha pela Tarifa Zero nos transportes públicos.
Apresentada em mais detalhes num novo espaço na internet, a campanha nasceu para confrontar duas das piores características das metrópoles brasileiras. Insurge-se contra a segregação que separa o Centro da Periferia, numa atualização do apartheid que dividia a colônia em Casa Grande e Senzala. E denuncia a mercantilização dos serviços públicos – que também fratura as cidades, ao estabelecer barreiras que só podem ser vencidas pelos que têm dinheiro.
Na batalha contra o aumento das tarifas, buscava-se a resposta imediata. Bem-sucedida (embora sem vitória econômica), ela deve continuar agora na forma de um debate mais intenso sobre o tipo de ambiente urbano que o Brasil quer construir. Aceitamos o papel de figurantes passivos, num modelo em que os protagonistas são o automóvel e a via expressa? Ou estamos dispostos a desbravar as possibilidades de novas metrópoles – menos desiguais, mais humanas e, por isso mesmo, dispostas a conviver com a natureza?
O movimento Passe Livre – Tarifa Zero sabe que não é possível optar apenas com palavras-de-ordem. Além de promover mobilizações, ele tem se preocupado em estimular debates formadores e – igualmente importante – em vislumbrar alternativas e resgatar as que já foram propostas.
A entrevista a seguir é um sinal desta ambição. Nela, um grupo de articuladores do Tarifa Zero entrevista a ex-prefeita (hoje deputada) Luiza Erundina. Busca-se reconstituir a memória de uma experiência fascinante: a eliminação das tarifas de ônibus, proposta (à época, sem sucesso) pela então prefeita, em 1991.
O diálogo não é monotemático. Erundina e seus entrevistadores colocam em pauta as políticas que seriam necessárias para vivermos em cidades para todos – capazes, portanto, de superar ao menos parte das discriminações e preconceitos em que estamos mergulhados. Especulam sobre estratégias para superar obstáculos impostos pelos grupos de poder e tornar tais políticas efetivas.
Resulta um texto que estimula a refletir sobre as cidades (e a sociedade) que estamos construindo. Num momento em que as maiores metrópoles brasileiras preparam-se para dois megaeventos globais (Copa do Mundo-2014 e Olimpíadas-2016), vale a pena examinar as ideias desta ex-prefeita nordestina e lutadora, que destaca, sobre as transformações sociais indispensáveis: “Se não foi vinte anos atrás, será um dia. A história dá saltos. O importante é você apostar em idéias que são inovadoras e acumular forças” (A.M).
Como evoluiu a conjuntura de governo até chegar a idéia da tarifa zero? Como esta proposta nasceu dentro do governo essa idéia da tarifa zero?
Luiza Erundina: A questão do transporte e do trânsito na cidade de São Paulo foi sempre um problema muito difícil, complexo, desafiador. Não foi diferente na nossa época, até porque nós tínhamos a CMTC (Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos), que deveria responder por 30% do transporte de ônibus da cidade e estava completamente sucateada. A frota envelhecida, deteriorada, estoques zerados. Basta dizer que havia um único pneu no estoque, no depósito, e esse pneu estava careca. Praticamente 30% do conjunto do sistema não funcionava.
Qual era o tamanho da frota da CMTC?
Luiza Erundina: Deveriam operar três mil ônibus. Mas estava muito reduzida, com muitos problemas. Além disso, havia uma má vontade dos fornecedores de peças, acessórios todo o necessário para manter a frota. A frota privada também estava envelhecida, deteriorada. Tínhamos um serviço de baixíssima qualidade e muito caro.
Começamos a tentar alternativas. Por exemplo, a municipalização, que mudou os termos de contrato da prestação do serviço de transporte. Governamos quatro anos com minoria na Câmara. E qualquer modificação dos contratos com as empresas exigia a aprovação de um projeto de lei. Só no terceiro ano de governo, conseguimos aprovar a lei de municipalização, que permitia que se remunerasse o serviço não por viagens realizadas, mas também por quilômetros rodados.
Outra lógica passou a reger essa relação contratual. Houve, inclusive, redução do número de passageiros por metro quadrado dentro dos ônibus. Significou melhor qualidade e redução de custos para o usuário. Evidentemente, a Prefeitura teve que arcar com um subsídio maior das tarifas. Era o único meio de melhorar a qualidade do serviço.
Os ônibus representavam muito mais que hoje, em São Paulo. Mais de seis milhões de usuários que dependiam do serviço. O metrô era muito mais limitado. Entre outras medidas que o setor de transporte bolou – particularmente Lúcio Gregori [secretário de Transporte] e sua equipe, havia a criação de um Fundo de Transporte, para o qual contribuiriam, além da Prefeitura, os empresários.
Quem mantinha negócios na cidade – bancos, supermercados, shoppings – deveria também participar dos custos do serviço, já que é um insumo dos negócios. O empresário depende do trabalhador ir e voltar para o trabalho. Era justo que os custos do serviço fossem, no mínimo, repartidos em três partes.
Esse fundo exigia outra lei, que a Câmara recusou-se a aprovar. Houve uma campanha contra essa proposta. O próprio Partido dos Trabalhadores, ao qual eu estava filiada como prefeita, também não entendeu a proposta, resistiu a ela.
Como foi o diálogo entre governo e o PT?
Luiza Erundina: Os setores conservadores difundiam uma visão equivocada, segundo a qual haveria necessariamente abusos, em um serviço gratuito. Segundo este preconceito, o sistema viraria um caos. Toda idéia inovadora, criativa, revolucionária em certo sentido, gera resistência. Tive dificuldade com a Câmara com relação ao transporte porque a oposição sabia que, à medida que a gente conseguisse melhorar o serviço, e fazer planejamento do tráfego e do trânsito, isso geraria dividendos políticos e eleitorais
Também pesou o fato de não mantermos aquela prática fisiológica, promíscua que normalmente existe na relação do Executivo com o Legislativo, sobretudo a história da Câmara Municipal e Prefeitura de São Paulo. Nunca foi uma história muito bonita do ponto de vista da independência e rigor ético na relação entre os dois poderes. Tudo que se tentava criar de novo no setor de transporte era visto com má vontade, má fé, má intenção. Isso evidentemente inviabilizou a proposta. A Câmara rejeitou o projeto. E hoje sabemos que a ideia está sendo incorporada, cogitada, reapropriada por muitos governos. Não é algo inusitado: em outros países, a divisão dos custos do transporte já se faz há muito tempo.
Os movimentos sociais reivindicavam a tarifa zero?
Luiza Erundina:O problema é que, quando se conseguiu construir essa proposta, faltavam poucos meses para fechar o orçamento da cidade. O Executivo é quem manda o projeto de lei orçamentária. Se não me engano, restavam três ou quatro meses para apresentar o projeto na Câmara. Não houve tempo suficiente para esclarecer certos setores que, não por má vontade, mas por desconhecimento, por não terem domínio da proposta no seu todo, ficavam desconfiados, inseguros, em dúvida.
Mas a população aprovou.
Luiza Erundina:A população aprovou. Só que não conseguimos acumular força política, pressão externa ao Legislativo… e a mídia também. Enfrentamos o cerco da Câmara e o da mídia. Talvez a gente não tenha sido muito competente na relação com a mídia. Até porque nós tínhamos muito rigor, muita preocupação em não extrapolar os investimentos em comunicação, em publicidade, em propaganda. Porque as carências na cidade eram tão grandes…
Vendo de fora, a uma certa distância e fazendo autocrítica, talvez a gente pudesse ter construído melhor aquela relação. Não com os donos dos veículos de comunicação, mas com os jornalistas, os trabalhadores da mídia. Se tivéssemos mais flexibilidade — não no sentido de ceder às práticas antiéticas, desonestas, corruptas, mas adotando uma política de comunicação mais flexível, mais aberta.
Alguns jornalistas simpáticos ao nosso governo nos contavam que tinham reuniões diárias com os coordenadores das matérias para saber como dava para bater na prefeita, criticar o governo.
Mas ficou a ideia. E quando a ideia é boa, necessária, oportuna, ela vinga. Se não vingar naquele espaço, naquele tempo, naquele governo, mais cedo ou mais tarde vai vingar. Em algum momento, em algum lugar, em algum espaço mais democrático, mais compreensivo.
A falta de compreensão por falta da mídia e dos partidos contrários à tarifa zero pode ter um pouco de preconceito de classe? Em não querer admitir que todos, inclusive os mais pobres, possam se locomover por todos os espaços?
Luiza Erundina:Com certeza. É o preconceito de que o pobre não é civilizado, não é educado, não vai entender os limites do uso de um serviço público. O pobre sabe fazer isso melhor do que o rico que nunca fez, não precisa usar. E a carga de preconceito que havia contra meu governo, contra mim pessoalmente. Mulher, nordestina, do PT, de esquerda, independente, que não cedia a nada do ponto de vista do que era ético, justo para a cidade, do que era correto.
Eu era vista como alguém que atrapalhava os interesses dos privilegiados, dos que sempre tiveram controle do Estado, da Prefeitura. A mentalidade patrimonialista vê o Estado como propriedade de uma classe, ou um segmento dessa classe. Tudo que vier no sentido de destinar meios, recursos, ação do Estado para incluir a maioria excluída, ou os trabalhadores, é atacado
O transporte coletivo está voltando para o centro das atenções da sociedade. O que a senhora acha da ideia de tarifa zero hoje?
Luiza Erundina:Depende da estratégia que se use. Acho que hoje, com o agravamento do trânsito, do transporte, os custos do sistema que crescem a cada dia – diante de tudo isso, as prioridades de investimento tendem a se alterar. Ao invés de construir tanto túnel, viaduto, vias expressas para favorecer o fluxo de automóveis, que se inverta essa tendência e se invista em outro tipo de infra-estrutura urbana, com vista ao transporte de massa, o transporte coletivo, a integração entre os vários sistemas. Um planejamento da cidade que atente para outra lógica: não a atual, em que todo o fluxo do tráfego e trânsito flui para o centro da cidade.
Descentralizar o serviço público seria uma alternativa complementar?
Luiza Erundina:Exatamente. Não só descentralizar, mas distribuir o fluxo de tráfego a partir de outro planejamento. Que as regiões tenham seu planejamento próprio e que ele esteja integrado ao das outras regiões, guardando entre si uma certa lógica, uma racionalidade capaz de reduzir fluxos, custos e tempo de deslocamento.
Já tínhamos o entendimento disso há vinte anos, mas não as condições políticas, correlação de forças na sociedade. Fomos eleitos pela maioria da população pobre e trabalhadora da cidade. Mas o nível de organização e participação política desse segmento não eram, naquele tempo, suficientes, – nem são, ainda — para respaldar um governo que invertesse toda lógica que predominava na vida da cidade.
Apesar disso, tivemos ousadia, coragem e, modéstia parte, competência. Era uma equipe muito competente, muito criativa, idealista, corajosa, ousada e que deixou marcas…
A senhora acha que seria possível construir hoje a proposta da tarifa zero, e lutar pelas questões do transporte, sem mobilização popular?
Luiza Erundina:Não, temos que mobilizar. E não se trata apenas de mobilizar os setores populares, mas de fazer um trabalho de opinião pública, no sentido de traduzir os aspectos técnicos dessa proposta, da inteligência que ela contém em si mesma. Talvez devêssemos todos nós, não só vocês que estão empenhados nessa bandeira, ampliar esse arco de alianças, de forças políticas e de interessados em conhecer melhor a proposta.
Para ver se ela se torna uma política pública não apenas de uma cidade, mas do país. Talvez fosse a hora de se trazer o debate, por exemplo, para uma comissão da Câmara dos Deputados, para o Congresso Nacional. Trazer os especialistas e os não-especialistas, os favoráveis e os não-favoráveis e recolocar a ideia na agenda do país.
Inclusive porque o problema do trânsito – e, sobretudo, do transporte coletivo de massa – ainda é um desafio que não se resolveu. Muito menos, nas grandes cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Recife etc.
Vamos discutir! Quem sabe, com outra conjuntura, seja possível fazer valer uma ideia tão genial, tão criativa e tão justa no ponto de vista da maioria, que são os que dependem do transporte coletivo. Quero me colocar à disposição dessa luta. Sou uma entusiasta da ideia e de outras que nosso governo teve na época. Era uma equipe muito boa, competente, corajosa. Marilena Chauí, Paul Singer, Paulo Freire, Lúcio Gregori, Paulo Sandroni.
Mas a gente chega lá um dia. Se não foi vinte anos atrás, será um dia. A história dá saltos. O importante é você apostar em ideias inovadoras, apostar nelas, e acumular forças. Passa pela vontade popular. Dom Tomás Balduíno já dizia que o novo o povo é que cria. E é mesmo!
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