segunda-feira, 18 de abril de 2011

Enquanto o Acusado é a Vítima...



Francisca Cássia de Almeida


O indiciado fora preso por policiais da Delegacia Geral do Município de Aparecida de Goiânia no início da tarde e logo a informação repassada para todos os veículos de co­municação daquele município e da capital. Trouxera cerca de 20 adolescentes do Estado da Bahia. três já maiores de 18 anos com certidões de nascimento falsas, com a promessa de que os colocaria para jogar em times de futebol de Goiás.

Para pagar os custos da viagem, recebeu dinheiro dos pais e instalou os adolescentes em uma casa num bairro de Aparecida, entretanto, as promessas de testes nos clubes não foram cumpridas. Os meninos permaneceram sozinhos na­quela casa enquanto aquele que se apresentava como profes­sor voltava para a Bahia, sem lhes dar explicações sobre o que iria fazer. Dormiam amontoados em colchões velhos e alimentavam-se com a ajuda da vizinhança. A situação perdu­rou por cerca de 20 dias até que um dos vizinhos informou a polícia sobre as condições em que os menores estavam vi­vendo.

Na oportunidade em que voltou a Aparecida, o “profes­sor” foi preso em flagrante por estelionato e falsificação de documentos situação agravada por colocar em risco a vida dos adolescentes — e interrogado pela polícia e pelos repórte­res. Nesta história verídica ocorrida em 1998, meu papel foi de repórter. Estudante de Direito, cursava o terceiro ano e ti­nha pleno conhecimento do artigo os da Constituição Federal, que encerra os direitos e garantias fundamentais do cidadão.

Fui conduzida à porta da cadeia pública e fiquei do lado de fora, separada do entrevistado por uma grade. Agin­do contra o estereótipo do repórter da mídia. Perguntei-lhe, como o fazia com todos os entrevistados, se poderia gravar a entrevista. Ele disse que não, mas insisti, expli­cando que seria melhor daquela forma pois sem lazer ano­tações teria mais tranquilidade para conversar. Ele aceitou. Posteriormente inquiri se o fotógrafo poderia fazer uma loto, consciente de que fora apenas preso em flagrante e após o inquérito policial ainda teria um longo proces­so pela frente até ser condenado. Não obtive autoriza­ção e consequentemente disse ao meu colega de trabalho para não fotografar.

Após a entrevista, já terminando meu trabalho, co­lhi dados com o delegado, quando chegava ao distrito policial, outros “colegas de profissão, já especializados naquele tipo de assunto: crime, polícia, bandidos, vio­lência. E, como especialistas na área, agiam com uma certa truculência e até mesmo violência com o ser hu­mano que estava ali. Imediatamente, o preso foi levado até a sala do delegado, filmado, fotografado, entrevis­tado ao vivo numa rádio. Um dos repórteres, inclusive, com um visual exótico. andava de um lado para o outro na sala fazendo perguntas alternadas para o delegado e para o preso. Parecia mais uma cena de ficção.

Um fotografo registrou a imagem do preso de todos os ângulos, momento em que o fotógrafo do jornal em que eu trabalhava também fez uma fotografia, recebendo re­provação do olhar do indivíduo, que não autorizara. Con­doída a matéria, foi revelado o filme e a pergunta do dono do jornal ao fotógrafo não podia ser outra: “Mas só esta fotografia? Por que não fez outras?.

Imagino que ele gostaria de ter uma fotografia do entrevistado atrás das grades ou, quem sabe, algemado, com uma expressão malvada, o típico bandido descrito por Lombroso. Afinal, a fotografia mostrava apenas um homem comum, como) tantos Josés e Antônios encontra­dos cm cada esquina do nosso país. Eu estava na reda­ção junto com eles e percebi apensa o fotógrafo com uma justificativa óbvia para as cobranças: “E os direitos hu­manos?”.

Isto fora exatamente o que eu tinha falado para ele na Delegacia quando não o deixei fazer a foto. A grande con­tradição entre as duas áreas que estudava — Jornalismo e Direito — despontou com mais intensidade neste caso con­creto, principalmente quando o dono do jornal falara para o fotógrafo: “Que direitos humanos o quê? Se 6 bandido tem que fotografar”.

Espetáculo e paixões


Esta pequena narrativa 6 um retrato de situações cor­riqueiras no cotidiano dos noticiários televisivos e suscita indagações de estudiosos da comunicação e do direito, tais como ótica do jornalista, responsabilidade do delegado e direitos do preso. Programas tais como o nacional Aqui Agora, um marco neste tipo de produção, o já tradicional Goiânia Urgente, e o absurdo chamado Barra Penda,in­vestiram no espetáculo como notícia.

Aproveitando-se do medo generalizado provocado pela crescente onda de violência nas cidades, os produtores dos noticiários policiais transformaram o repórter em porta-voz deste temor. A ele 6 permitido emitir opiniões infunda­das, gritar palavras de ordem, exigir providências absur­das e imediatas para condenar aqueles que subverteram a lei. O repórter tem a autorização para se esquivar do fato e invadir as emoções do telespectador, fazendo comentários apaixonados e sem fundamentação.

O telespectador, por sua vez, identifica-se com aquele interlocutor indignado que se coloca em frente às câmeras. pois em suas palavras ele retrata exatamente o medo da violência, a indignação com a morosidade da justiça, os anseios em ver os problemas resolvidos instantaneamente. Esta identificação contribui para aumentar a audiência, atrair os anunciantes e fornece argumentos para os produtores manterem no ar os pro­gramas de má qualidade.

E para “agradar ao povo” estampam o rosto do pre­so em flagrante, do indiciado, do acusado na televisão e nos jornais, como se fosse um criminoso em potenci­al, escória da sociedade, fator de desequilíbrio que deve ser excluído do convívio com os outros. O veículo que ousar fugir desta regra será fatalmente conduzido ao ostracismo, à audiência minguada e, logicamente, per­derá seus anunciantes. Assim, mais vale o espetáculo, a fragmentação da realidade, os comentários apaixona­dos, a audiência que o ser humano, o sujeito de direitos que possivelmente transgrediu a lei’.

O tratamento oferecido aos presos pelos profissio­nais da imprensa, com a permissão do delegado de policia, está intrinsecamente ligado ao direito à vida, não apenas à cidadania, classificado como direito de terceira geração. O caso mais expressivo de que este desrespeito destruiu a vida de pessoas inocentes, que se viram impossibilitadas de continuar seu trabalho ou iniciar qualquer outro, foi o dos proprietários da Escola Base em São Paulo, acusados via sat6li:e, no horário nobre da Rede Globo, de abuso sexual contra os alunos.

E quantos presos, indiciados ou acusados em proces­so-crime têm suas vidas invadidas, desmanteladas por uma maioria publicada pela mídia? Podemos perceber que a cul­tura do espetáculo, do bizarro, do sensacionalismo, está se tornando cada vez mais comum nos telejornais. Não se vei­cula mais informações. O espetáculo 6 colocado no ar, com aparência de verdade. Ligar a televisão para assistir a um telejornal é tão “satisfatório” como ver a novela veiculada logo depois. O telespectador realiza seus desejos mais con­tidos de ver a justiça concretizada.

A “justiça” da mídia, no entanto, é muito perigosa. Além de não existir um processo, não são realizadas inves­tigações profundas, não há o contraditório e muito menos vigora o principio in dubio reo. Ao contrário, o repór­ter tem às vezes meia hora de disponibilidade para apurar o fato, tempo mínimo em que serão utilizados apenas seus juízos de valor na análise do crime em questão, não tem formação jurídica e predomina o principio ia dubio pra audiência.

Diante destes fatos, o acusado transforma-se em vitima. Vítima de uma condenação prévia pela mídia, por profissionais que não têm conhecimento jurídico ou nem mesmo possuem formação em comunicação. Depois do flagrante, não há uma continuidade no acom­panhamento das investigações, pois outros flagrantes serão realizados e a eficácia da policia é mais espetácu­lo do que a morosidade do Judiciário.

Se formos investigar quem são os responsáveis pela violação dos direitos do preso, fatalmente chegaremos a duas conclusões: o delegado de policia, que permite ao jornalista não apenas entrevistar, mas usar e humilhar aquele indiciado por crimes e o próprio jornalista, que não se pau­ta por princípios éticos de respeito ao cidadão e trata dife­rentemente os governantes, empresários e intelectuais de um lado, e presos, pobres e negros, de outro.

Necessitamos, portanto, de uma postura ética tanto de uma parte como de outra, pois enquanto a responsabilidade for passada para as mãos dos outros não há mudança. A mídia continuará fazendo o papel de tribunal prévio, juiz sem lei e acusador sem argumentos, fundamentado apenas nas paixões que afloram em situações de conflito.

DHnet

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