Francisca Cássia de Almeida
O indiciado fora preso por policiais da Delegacia Geral do Município de Aparecida de Goiânia no início da tarde e logo a informação repassada para todos os veículos de comunicação daquele município e da capital. Trouxera cerca de 20 adolescentes do Estado da Bahia. três já maiores de 18 anos com certidões de nascimento falsas, com a promessa de que os colocaria para jogar em times de futebol de Goiás.
Para pagar os custos da viagem, recebeu dinheiro dos pais e instalou os adolescentes em uma casa num bairro de Aparecida, entretanto, as promessas de testes nos clubes não foram cumpridas. Os meninos permaneceram sozinhos naquela casa enquanto aquele que se apresentava como professor voltava para a Bahia, sem lhes dar explicações sobre o que iria fazer. Dormiam amontoados em colchões velhos e alimentavam-se com a ajuda da vizinhança. A situação perdurou por cerca de 20 dias até que um dos vizinhos informou a polícia sobre as condições em que os menores estavam vivendo.
Na oportunidade em que voltou a Aparecida, o “professor” foi preso em flagrante por estelionato e falsificação de documentos situação agravada por colocar em risco a vida dos adolescentes — e interrogado pela polícia e pelos repórteres. Nesta história verídica ocorrida em 1998, meu papel foi de repórter. Estudante de Direito, cursava o terceiro ano e tinha pleno conhecimento do artigo os da Constituição Federal, que encerra os direitos e garantias fundamentais do cidadão.
Fui conduzida à porta da cadeia pública e fiquei do lado de fora, separada do entrevistado por uma grade. Agindo contra o estereótipo do repórter da mídia. Perguntei-lhe, como o fazia com todos os entrevistados, se poderia gravar a entrevista. Ele disse que não, mas insisti, explicando que seria melhor daquela forma pois sem lazer anotações teria mais tranquilidade para conversar. Ele aceitou. Posteriormente inquiri se o fotógrafo poderia fazer uma loto, consciente de que fora apenas preso em flagrante e após o inquérito policial ainda teria um longo processo pela frente até ser condenado. Não obtive autorização e consequentemente disse ao meu colega de trabalho para não fotografar.
Após a entrevista, já terminando meu trabalho, colhi dados com o delegado, quando chegava ao distrito policial, outros “colegas de profissão, já especializados naquele tipo de assunto: crime, polícia, bandidos, violência. E, como especialistas na área, agiam com uma certa truculência e até mesmo violência com o ser humano que estava ali. Imediatamente, o preso foi levado até a sala do delegado, filmado, fotografado, entrevistado ao vivo numa rádio. Um dos repórteres, inclusive, com um visual exótico. andava de um lado para o outro na sala fazendo perguntas alternadas para o delegado e para o preso. Parecia mais uma cena de ficção.
Um fotografo registrou a imagem do preso de todos os ângulos, momento em que o fotógrafo do jornal em que eu trabalhava também fez uma fotografia, recebendo reprovação do olhar do indivíduo, que não autorizara. Condoída a matéria, foi revelado o filme e a pergunta do dono do jornal ao fotógrafo não podia ser outra: “Mas só esta fotografia? Por que não fez outras?.
Imagino que ele gostaria de ter uma fotografia do entrevistado atrás das grades ou, quem sabe, algemado, com uma expressão malvada, o típico bandido descrito por Lombroso. Afinal, a fotografia mostrava apenas um homem comum, como) tantos Josés e Antônios encontrados cm cada esquina do nosso país. Eu estava na redação junto com eles e percebi apensa o fotógrafo com uma justificativa óbvia para as cobranças: “E os direitos humanos?”.
Isto fora exatamente o que eu tinha falado para ele na Delegacia quando não o deixei fazer a foto. A grande contradição entre as duas áreas que estudava — Jornalismo e Direito — despontou com mais intensidade neste caso concreto, principalmente quando o dono do jornal falara para o fotógrafo: “Que direitos humanos o quê? Se 6 bandido tem que fotografar”.
Espetáculo e paixões
Esta pequena narrativa 6 um retrato de situações corriqueiras no cotidiano dos noticiários televisivos e suscita indagações de estudiosos da comunicação e do direito, tais como ótica do jornalista, responsabilidade do delegado e direitos do preso. Programas tais como o nacional Aqui Agora, um marco neste tipo de produção, o já tradicional Goiânia Urgente, e o absurdo chamado Barra Penda,investiram no espetáculo como notícia.
Aproveitando-se do medo generalizado provocado pela crescente onda de violência nas cidades, os produtores dos noticiários policiais transformaram o repórter em porta-voz deste temor. A ele 6 permitido emitir opiniões infundadas, gritar palavras de ordem, exigir providências absurdas e imediatas para condenar aqueles que subverteram a lei. O repórter tem a autorização para se esquivar do fato e invadir as emoções do telespectador, fazendo comentários apaixonados e sem fundamentação.
O telespectador, por sua vez, identifica-se com aquele interlocutor indignado que se coloca em frente às câmeras. pois em suas palavras ele retrata exatamente o medo da violência, a indignação com a morosidade da justiça, os anseios em ver os problemas resolvidos instantaneamente. Esta identificação contribui para aumentar a audiência, atrair os anunciantes e fornece argumentos para os produtores manterem no ar os programas de má qualidade.
E para “agradar ao povo” estampam o rosto do preso em flagrante, do indiciado, do acusado na televisão e nos jornais, como se fosse um criminoso em potencial, escória da sociedade, fator de desequilíbrio que deve ser excluído do convívio com os outros. O veículo que ousar fugir desta regra será fatalmente conduzido ao ostracismo, à audiência minguada e, logicamente, perderá seus anunciantes. Assim, mais vale o espetáculo, a fragmentação da realidade, os comentários apaixonados, a audiência que o ser humano, o sujeito de direitos que possivelmente transgrediu a lei’.
O tratamento oferecido aos presos pelos profissionais da imprensa, com a permissão do delegado de policia, está intrinsecamente ligado ao direito à vida, não apenas à cidadania, classificado como direito de terceira geração. O caso mais expressivo de que este desrespeito destruiu a vida de pessoas inocentes, que se viram impossibilitadas de continuar seu trabalho ou iniciar qualquer outro, foi o dos proprietários da Escola Base em São Paulo , acusados via sat6li:e, no horário nobre da Rede Globo, de abuso sexual contra os alunos.
E quantos presos, indiciados ou acusados em processo-crime têm suas vidas invadidas, desmanteladas por uma maioria publicada pela mídia? Podemos perceber que a cultura do espetáculo, do bizarro, do sensacionalismo, está se tornando cada vez mais comum nos telejornais. Não se veicula mais informações. O espetáculo 6 colocado no ar, com aparência de verdade. Ligar a televisão para assistir a um telejornal é tão “satisfatório” como ver a novela veiculada logo depois. O telespectador realiza seus desejos mais contidos de ver a justiça concretizada.
A “justiça” da mídia, no entanto, é muito perigosa. Além de não existir um processo, não são realizadas investigações profundas, não há o contraditório e muito menos vigora o principio in dubio reo. Ao contrário, o repórter tem às vezes meia hora de disponibilidade para apurar o fato, tempo mínimo em que serão utilizados apenas seus juízos de valor na análise do crime em questão, não tem formação jurídica e predomina o principio ia dubio pra audiência.
Diante destes fatos, o acusado transforma-se em vitima. Vítima de uma condenação prévia pela mídia, por profissionais que não têm conhecimento jurídico ou nem mesmo possuem formação em comunicação. Depois do flagrante, não há uma continuidade no acompanhamento das investigações, pois outros flagrantes serão realizados e a eficácia da policia é mais espetáculo do que a morosidade do Judiciário.
Se formos investigar quem são os responsáveis pela violação dos direitos do preso, fatalmente chegaremos a duas conclusões: o delegado de policia, que permite ao jornalista não apenas entrevistar, mas usar e humilhar aquele indiciado por crimes e o próprio jornalista, que não se pauta por princípios éticos de respeito ao cidadão e trata diferentemente os governantes, empresários e intelectuais de um lado, e presos, pobres e negros, de outro.
Necessitamos, portanto, de uma postura ética tanto de uma parte como de outra, pois enquanto a responsabilidade for passada para as mãos dos outros não há mudança. A mídia continuará fazendo o papel de tribunal prévio, juiz sem lei e acusador sem argumentos, fundamentado apenas nas paixões que afloram em situações de conflito.
DHnet
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