sexta-feira, 17 de abril de 2009

Muito além do chocolate


Contardo Caligaris, numa entrevista memorável à revista Primeira Leitura (maio de 2006), diz que o exercício da subjetividade é muito cansativo. Ser indivíduo, ele afirma, é um negócio complicado, pesado, e há uma tendência perigosa a se renunciar à individualidade e de se tornar instrumento de um funcionamento coletivo.

Por que estou citando Caligaris e o que isso tem a ver com o chocolate do título? Porque àquele finalzinho saboroso dos ovos de Páscoa, dos quais ainda nem demos conta totalmente, quero acrescentar uma reflexão motivada pela data.

Caligaris associa a origem do individualismo moderno ao cristianismo, no qual a relação com Deus é do foro íntimo de cada um. Independe do pertencimento a nação, grupo familiar ou condição social.

Ao mesmo tempo em que está profundamente vinculado à escolha do indivíduo, o Deus do cristianismo é também universal. A Páscoa, tanto a judaica quanto a cristã, fala de superação, de passagem de uma situação a outra. Para os cristãos, o sentido da passagem é marcado pelo sacrifício de Jesus, para salvação da humanidade. Um ato supremo de renúncia de si mesmo, transmutado em gesto de amor.

A máxima cristã diz "amar a Deus e ao próximo como a ti mesmo". Mas o que vem primeiro? O sentido mais forte da Páscoa é a generosidade presente na radicalidade do gesto de Cristo, entregando-se ao sacrifício supremo em nome do "próximo" universal, formado por todos os seres humanos. Seria então o amor ao outro que nos ensina a nos amarmos?

A idéia de amar primeiro a Deus fornece um norte, porque estaríamos diante do Grande Outro de que falava Lacan, a fonte original do amor. Então, se o amor a Deus ou a um princípio geral vem em primeiro lugar, o nosso aprendizado, tanto em relação a nós mesmos quanto aos demais, derivará desse vínculo fundante, do qual emana a capacidade de amar ao próximo, com as contradições, sofrimentos e virtudes há muito identificadas na primeira experiência de amor humano, cujo objeto são os pais ou quem lhes faça as vezes.

A psicanálise tem discussões muito interessantes a esse respeito. Acredito que é mesmo um tema chave para entendermos o nosso tempo, atolado em individualismo tão doentio que chega até mesmo a impossibilitar o amor a si, quanto mais aos próximos ou remotos.

Num tempo de amor desterritorializado, confuso, destituído de generosidade e confundido com posse, ascendência ou apegos sufocantes, a reflexão que vem da fé pode ajudar a pensar, até mesmo aos que não a tem. Pois, no fundo, o desafio está na recuperação da capacidade humana de transcender-se e ver genuinamente o outro, na beleza única de sua autonomia e diferença.

Esse é o lugar da individualidade constitutiva da irrevogável capacidade que tem o sujeito de fazer escolhas. Ela não pode ser uma couraça que impede a percepção da existência dos demais e, portanto, também da existência de um espaço coletivo no qual todos podem se encontrar, se completar e se sustentar.

Marina Silva é professora secundária de História, senadora pelo PT do Acre e ex-ministra do Meio Ambiente.

Fale com Marina Silva: marina.silva08@terra.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...