domingo, 11 de março de 2012

Aborto: Dê-me seu sintoma e eu removerei sua culpa




Saiu na Folha de São Paulo no Caderno Cotidiano de 25/02/2012:
Proposta quer liberar aborto a mulher sem “condição psicológica”

Por Flávio Ferreira:


A comissão de reforma do Código Penal do Senado apresentou em audiência pública proposta que descriminaliza o aborto realizado até a 12ª semana de gravidez quando, a partir de um pedido da gestante, o “médico constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade”

Nunca fui fã de Michel Foucault, tenho seus livros mais pela obrigação de conhecer um autor frequentemente citado por setores mais delinquentes da desconstrução teórica da psiquiatria, entretanto uma proposta como a acima vindo justamente de setores “progressistas” surpreendeu-me. 


Eu não preciso declarar-me a favor ou contra a descriminalização do aborto para abominar a ideia que sob o argumento de “condições psicológicas” possa-se chancelar o aborto.

Como psiquiatra clínico e forense, já tive muitas pacientes que relaxaram no planejamento familiar e acabaram engravidando, jamais pensei que encaminhá-las para o aborto pudesse ser uma alternativa. Mas com esse discurso colocado, e se ainda aprovado, certamente me verei pressionado, por algum ente familiar das pacientes grávidas a redigir um documento que permita o aborto.

O debate nas hostes científicas da psiquiatria forense se dá entorno, justamente, do excessivo poder dos laudos psiquiátricos de influenciar decisões de libertar ou não alguém que está em tratamento custodiado (fechado). Algumas correntes defendem a substituição do conceito de Periculosidade, simplista (presente ou não) pelo de Avaliação de Risco em que seriam postas as condições para se colocar em liberdade alguém que já cumpriu o tratamento imputado. Defendo que o psiquiatra forense não tem, e nem nunca terá, mecanismos garantidores de que alguém não irá mais cometer um crime e que avaliações de risco trariam o discurso para o “mundo real”, condicionando a minimização do risco de um doente mental delinquir novamente ao correto seguimento do tratamento ou da presença da família durante o tratamento.

Apesar desse movimento do debate psiquiátrico forense, agora aparece alguém novamente querendo dar mais poder ao psiquiatra, e como se este fosse capaz de decidir o futuro de duas vidas. Já tive casos de pacientes que os sintomas psiquiátricos, psicóticos ou não, tornaram-se menos intensos após o nascimento do filho. Já tive pacientes que tomaram medicações psiquiátricas durante toda a gestação, pois era impossível suspender, e as crianças nasceram normais. Já vi casos que a família tornou-se mais unida após o nascimento da criança. Ou seja, não é possível afirmar os impactos que uma gestação provocará na vida de uma mulher.

E o possível conflito emocional na relação médico-paciente, que uma medida como essa pode provocar caso um médico permita a realização do aborto? E depois, já fora do “surto”, com essa paciente culpando seu médico pelo filho que lhe foi retirado? Uma tragédia na sala de espera.

Crítico do tamanho do poder psiquiátrico que a sociedade construiu, Foucault, ironizou, em um de seus seminários em janeiro de 1974 : me de seu sintoma e eu removerei sua culpa .

Voltem a ler Foucault, progressistas! 


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