quarta-feira, 14 de março de 2012

Filosofia da Libertação

Por um projeto futuro de construção de uma sociedade que supere os graves problemas sociais gerados pelo capitalismo 


Professor da Universidade Federal da Paraíba, Antônio Rufino Vieira relembra sua trajetória, aponta os desafios éticos no contexto da América Latina e define que a obra de Marx deve ser lida como uma "Filosofia do futuro"

Por Rafael Rodrigues


Nascido na pequena cidade de Alagoa Nova, no estado da Paraíba, o professor Antônio Rufino Vieira ganhou o mundo por meio da filosofia. Graduou-se em Filosofia na Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em São Paulo, em 1973. Depois, no Rio de Janeiro, fez o mestrado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da universidade federal daquele estado, defendendo a dissertação "Antropologia Fenomenológica, segundo Max Scheler¹” na mesma universidade também defendeu sua tese de doutorado, que teve como título "O projeto utópico da Filosofia da Libertação". Além disso, possui dois pós-doutorados, um pela Universite du Quebec a Trois-Rivieres (Canada) e outro pela Universite Catholique de Louvain² (Belgica). 


Atuando no ensino e na pesquisa de Filosofia ha mais de 3O anos, o professor Antônio Rufino Vieira é um dos mais importantes pesquisadores do país. Suas pesquisas são voltadas para os campos da Ética e da Filosofia Politica, tendo o Marxismo e a Filosofia da Libertação como principais focos de estudo.

Nesta entrevista o professor e filosofo, que em 1979 foi convidado a retomar ao estado natal na condição de professor da Universidade Federal da Paraíba, da qual é professor ate hoje, relembra o caminho que percorreu ate o momento, e fala também sobre os temas de suas pesquisas.

Conhecimento Pratico Filosofia: 
O senhor nasceu no município de Alagoa Nova, na Paraíba, em 195O (segundo dados do IBGE de 2OO6, Alagoa Nova tem cerca de 2O mi habitantes atualmente). Hoje o senhor tem dois pós-doutorados no currículo e professor da Universidade Federal da Paraíba Pode nos contar um pouco do que aconteceu entre 195O e 2O11? Como o senhor se interessou por Filosofia?

Antônio Rufino Vieira: 
Meus pais migraram, como tantos outros nordestinos, em 1955 para o Rio de Janeiro, na perspectiva de realizar o sonho de uma vida melhor para os filhos, de um futuro melhor. E, como todo imigrante sem muitos estudos, meu saudoso pai teve que trabalhar na construção civil como servente; posteriormente, juntamente com minha também saudosa mãe, passaram a trabalhar como feirantes, entre 1962 e 1978. Nesse período, frequentemente eu os acompanhava e, nas horas vagas, lia artigos na revista O Cruzeiro³; nessa revista me dedicava especialmente a uma seção que tinha como objetivo apresentar grandes clássicos da literatura mundial. Foi mergulhando, na adolescência, nessa seção que, pela primeira vez, tive contato com a apresentação de algumas obras filosóficas, como a Política, de Aristóteles, e a República, de Platão. Mas foram os artigos dedicados a A Utopia, de Thomas Morus, O Príncipe, de Maquiavel, e O Contrato Social, de Rousseau, que mais me chamaram a atenção (essas obras, vez por outra, tomo como referencias bibliográficas para a disciplina "Filosofia Política" no curso de graduação em Filosofia, por entender a importância delas para a filosofia política contemporânea).

Cursei a Licenciatura em Filosofia na Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em São Paulo, dirigida pelos padres jesuítas, de 1971 a 1973. No inicio de 1975, resolvi não mais morar em São Paulo, retomando para o Rio de Janeiro, agora para o bairro do Realengo, onde residiam os meus pais, ingressando no mestrado em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS); em outubro de 1978, fiz a defesa de minha dissertação, intitulada "Antropologia Fenomenológica, segundo Max Scheler".

Ao ingressar formalmente no mundo acadêmico - filosófico, exatamente pelas raízes proletárias, as quais não podem ser abandonadas, esquecidas ou deixadas entre parêntesis; o interesse pela filosofia política, pela filosofia latino--americana de libertação e pelo marxismo veio paulatinamente se desenvolvendo, firmando-se definitivamente na década de 8O do século passado com o doutoramento, também concluído no Rio de Janeiro.

CPF: O senhor é professor da UFPB desde 1979. Como foi essa volta a terra natal, proporcionada justamente pela Filosofia, depois de mais de 2O anos fora? 

ARV: Recebi o convite do Departamento de Filosofia da UFPB para compor o seu quadro docente pouco depois de defender minha tese de mestrado, em 1978. Foi a oportunidade de, apos 24 anos, retomar ao estado natal, assumindo de vez a "paraibanidade". Ao me despedir das atividades docentes no Rio de Janeiro, dois comentários curiosos questionavam a opção de deixar uma universidade carioca por uma paraibana. O primeiro, feito por um aluno, perguntava: "Por que ir para o Nordeste? O Nordeste não precisa de filosofia, precisa de comida", complementou. O segundo, feito por um professor, interrogava se o Nordeste teria competência para montar um Mestrado em Filosofia (o Mestrado em Filosofia da UFPB foi criado em março de 1979); ele não via necessidade de outros mestrados, pois os existentes (os do sul do país) seriam suficientes para atender a demanda de formação. Tais críticas, em lugar de desanimar, foram mais um estímulo para vir contribuir para a filosofia na Paraíba.

CPF Qual a leitura que o senhor faz do marxismo?
ARV: Em uma recente mesa-redonda sobre a obra de Marx, realizada na Universidade Federal da Paraíba, sustentei que a obra de Marx, inclusive O Capital, deve ser lida tendo como referência um projeto futuro de construção de uma sociedade que supere os graves problemas sociais gerados pelo capitalismo. Ou melhor, o marxismo é uma filosofia do futuro. Obviamente, ao se analisar o materialismo histórico-dialético, poder-se-ia objetar que Marx não se preocupou com a formulação de uma sociedade futura, mas apenas com uma análise rigorosa e analítica da sociedade burguesa de seu tempo; nesse sentido, falar em futuro na perspectiva do pensamento de Marx poderia parecer um utopismo carregado de idealismo. Entendo, seguindo o pensamento do filósofo alemão Ernst Bloch (4), de que "um futuro do tipo autêntico, aberto como processo, é inacessível e estranho à toda mera contemplação". É esse futuro que anima o intelectual orgânico, guiado pelo otimismo militante, para a construção do novum. No meu entender, por meio das reflexões econômicas muito ricas que Marx efetuou sobre o sistema capitalista, existe sempre manifesta sua preocupação com a situação concreta do homem. Essa preocupação se revela desde seus escritos mais "filosóficos" até os escritos "científicos". Seu fim, portanto, é a libertação do homem para que ele se tome na sua totalidade senhor de si mesmo.

CPF: Para o senhor, qual o papel da Filosofia frente à sociedade? A Filosofia tem ou pode vir a ter uma função social?
ARV: A minha tese de doutorado, intitulada "O Projeto Utópico da Filosofia da Libertação", foi centrada unicamente na tentativa de construção de uma filosofia autenticamente latino-americana que deve estar ligada a um comprometimento do filósofo em compreender e transformar a realidade. Para mim, a filosofia da libertação assume decididamente a realidade latino-americana como problema para o pensar filosófico, tratando, de modo explícito, de revisar as possibilidades e limites de uma filosofia latino-americana libertadora, comprometida com nosso povo, autêntica, original, eficaz teórica e politicamente.

Pretendi estudar a filosofia da libertação destacando a sua busca do novo e do humano como conceitos utópicos básicos para a compreensão da práxis transformadora de uma sociedade dependente, como é a sociedade latino-americana. Para tal, tomou-se necessária a análise do conceito de dominação para explicitar o dilema da libertação-dependência no qual está vivendo a América Latina; o que implica, no campo da Filosofia, que o filósofo pense a partir da periferia, contribuindo, dessa forma, para o saber universal. Para tanto, o filósofo da periferia terá que dirigir sua atenção para os elementos sociopolítico-econômicos de sua situação concreta a fim de poder discernir e explicitar a possibilidade do surgimento do Novo. Deverá, com efeito, haver um novo posicionamento dos filósofos latino-americanos, constituindo-se a filosofia da libertação em um real instrumento teórico para a práxis de libertação das classes populares; deixa de ser simples teoria para tomar-se instrumento político-revolucionário à medida que se compromete com a luta de libertação das classes populares. A teoria da filosofia da libertação fomenta uma práxis utópico-revolucionária ao se propor a ser mais um dos instrumentos (teóricos) que as classes populares podem utilizar para a transformação sociopolítico-econômica da sociedade. Se a filosofia da libertação pretende assumir a realidade como problema, deverá partir para a análise da ideologia dominante, a fim de que as classes oprimidas venham a explicitar quais são os instrumentos teórico-práticos utilizados pelas classes dominantes.

Muitos, no mundo acadêmico, não acreditam que pesquisas centradas em preocupações práticas representem a melhor opção para a incipiente pesquisa filosófica nacional. Essa é a síntese dos argumentos que frequentemente são colocados contra os fundamentos da filosofia da libertação. Todavia, como ainda constata Antônio Vidal Nunes (5), professor de Filosofia no Brasil e América Latina da Universidade Federal do Espírito Santo, "continuamos a fazer Filosofia olhando para a Europa e de costas para o nosso continente". Por isso, sempre venho insistindo no caráter estritamente filosófico da filosofia da libertação, que está em constante diálogo com a tradição filosófica, avançando nesse comprometimento com a práxis de libertação das vítimas do sistema. Pouco a pouco a filosofia da libertação passa a ser reconhecida nos meios acadêmicos como um movimento que tem algo a falar, que tem algo a precisar, que não é ideologia ou pseudo-filosofia, mas que se apresenta como filosofia, com o seu rigor e vigor, embora em seu discurso tenha, também, que ser compreendida por aqueles para os quais se dirige: as vítimas, os excluídos, os oprimidos.

CPF: Suas linhas principais de pesquisa são a ética e a política. Como o senhor vê a questão da ética e da moral, principalmente no Brasil e na América Latina?
ARV: A preocupação com o homem real é uma exigência ética que, no contexto atual da América Latina, economicamente periférica, se manifesta como condição de eliminação da opressão e da alienação para uma sociedade mais justa. A nova sociedade, o reino da liberdade, é compreendida em função da proposta socialista, como forma ética de ultrapassar a opressão à qual estão submetidos os trabalhadores. Assim, a opção pelo sistema socialista decorre da própria crítica feita aos desequilíbrios e às contradições do sistema capitalista periférico, tais como o desemprego, a fome, a miséria e a exploração.

Se hoje Marx pode ser tomado como referencial para a América Latina, mesmo com a crise do socialismo real e consequente desprestígio da teoria marxista, é necessário rever essa retomada, de modo particular no momento tão agudo por que passa o pensamento de esquerda, quando o neoliberalismo parece avançar como a única via para o desenvolvimento da história. É importante pensar sobre a oportunidade da filosofia marxista não como mera curiosidade acadêmica, mas como possibilidade orgânica de ajudar nas transformações qualitativas da sociedade. Tais transformações, orientadas pelo respeito ao outro, passam pela afirmação do bloco social dos oprimidos, o povo, como sendo aquele que dá sentido à mudança social rumo à uma sociedade justa, menos desigual, desalienada, fraterna e livre.

Atualmente trabalho com uma pesquisa cujo tema é "Ética e sociedade", que tem como referencial o pensamento de especialistas no campo de investigação da ética, e com a qual pretendo inicialmente discutir a necessidade de um estudo dialógico entre a ética de libertação latino-americana e a ética do discurso a partir de, no mínimo, quatro pontos: a) a análise dos desafios éticos que a tecnologia nos coloca e que o neoliberalismo nos apresenta neste tempo de globalização; b) o mundo do trabalho e (de novo) o problema da alienação; c) uma ética universal, confrontada com a necessidade de consenso; d) a discussão de uma ética da solidariedade e responsabilidade internacional no século 21. Ressalto o compromisso ético-político da filosofia da libertação frente aos desafios contemporâneos, particularmente em sua crítica à globalização, investigando a fundo como o comportamento ético, identificado como liberdade, é apreendido a partir dos fenômenos sociais. Tento mostrar que a ética material de vida ressalta a possibilidade de existência dos compromissos éticos com uma sociedade futura verdadeiramente voltada para os interesses de homens livres; assim como apresento a discussão sobre a possibilidade de se realizar uma crítica radical ao capitalismo, ressaltando que os seus efeitos são, na prática, uma negação da humanidade. Nesse sentido, objetiva-se avançar na proposta de uma ética material da vida que, em seu sentido integral, exija um conceito forte de justiça, não meramente formal e por onde inclua uma fundamentação prática e crítica da economia como tal.


Notas:

1. Max Scheler
O filósofo alemão Max Scheler (1874-1928) desenvolveu suas pesquisas no campo da epistemologia, da antropologia filosófica, da psicologia e da ética. Na década de 1950, Karol Josef Wojtyta (1920-2005), que, em 1978, foi entronizado papa João Paulo II, defendeu uma tese sobre Ética Cristã baseada no pensamento de Scheler.  

2. Université Cathotique de Louvain 
Fundada em 1425, a Université Catholique de Louvain (Universidade Católica de Louvain), da Bélgica, é um dos mais respeitados centros de ensino e pesquisa da Europa. O detalhe curioso é que, em 1968, a instituição foi dividida em duas: uma de fala holandesa (Katholieke Universiteit) e outra francesa (Université Catholique). Seu site oficial éhttp://www.uclouvain.be/ 

3. O Cruzeiro
Importante publicação brasileira do século 20, O Cruzeiro circulou entre 1928 e 1975. A revista tratava de diversos assuntos e foi responsável por grandes reportagens e por diversas inovações gráficas e editoriais. A edição especial com a cobertura do suicídio de Getúlio Vargas vendeu cerca de 700 mil exemplares. 

4. Ernst Bloch
Filósofo marxista, nascido na cidade de Ludwigshafen, Alemanha, Ernst Bloch (1885-1977) é considerado influência para diversas tendências filosóficas e teológicas, tais como a teoria crítica franfkurtiana e a teologia da libertação. Escreveu, entre outros, O Espirito da Utopia e Thomas Müntzer, c Teólogo da Revolução.  

5. Antônio Vidal Nunes
Professor da Universidade Federal do Espírito Santo, Antônio Vidal Nunes é filósofo graduado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), instituição pela qual tomou-se mestre em Educação. É também doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).  


FILOSOFIA.UOL.COM.BR


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