quinta-feira, 31 de março de 2011

Complacência com tortura estimula violência policial



Marcelo Semer
De São Paulo

Poucas cenas são tão impactantes, quanto a de policiais-militares disparando, à queima-roupa, contra um garoto indefeso de quinze anos, na cidade de Manaus.
Sozinho, desarmado e acuado, o adolescente recebeu diversos tiros, mas no boletim de ocorrência, os agentes da lei disseram que apenas se defendiam de seus ataques.
Pela enorme perplexidade que também causou, a fotografia do PM carioca jogando gás pimenta em uma criança, durante repressão a manifestação de moradores no Morro do Bumba, entrou para o álbum tétrico da violência policial da semana.
Álbum, aliás, que se completou com a informação de que a Polícia Civil estima em torno de cento e cinquenta as vítimas de homicídios de grupos de extermínio constituídos por policiais militares no Estado de São Paulo.
A repulsa social é gigantesca quando vemos as imagens destes crimes. Mas a inércia diante da violência policial permanece intacta.
Policiais julgados pelas mortes de pessoas supostamente atingidas em conflito raramente são condenados.
A informação de que as vítimas tenham "antecedentes criminais" quase sempre funciona como elemento fundamental da absolvição.
Nesse particular, pouco parece ter mudado, com a transferência da Justiça Militar para a Comum, da competência para julgar homicídios praticados por PMs, logo após a chacina do Carandiru.
Os jurados muitas vezes se comovem com as narradas vicissitudes de policiais em confronto, principalmente quando se relatam casos de resistências.
Inúmeras mortes nem sequer chegam a plenário, arquivadas a pedido dos promotores, com relatos relativamente similares àqueles trazidos pelos PMs de Manaus.
Ninguém seria insano em afirmar que os policiais são, em regra, criminosos.
O trabalho de promotores e juízes nos fóruns criminais é praticamente todo ele lastreado nas prisões em flagrante realizadas por policiais militares, logo em seguida a furtos, roubos, sequestros, tráficos de entorpecente -em boa parte destes, justamente pela presteza e eficiência policiais.
Todavia, a noção de autoridade e os frágeis limites deste agir, ainda são pouco respeitados país afora.
Casos relatados de torturas e violências cotidianas a presos (conhecidas como "esculachos") são frequentes e não é raro encontrarem-se réus que já chegam feridos à delegacia.
A cultura da violência permitida ou relevada, por alguma hipotética função social, inexplicavelmente sobrevive entre nós.
Não à toa, os processos criminais por tortura são pouquíssimos - delegados, promotores e juízes menosprezam ou ignoram reclamações, em razão de uma suposta falta de credibilidade das vítimas.
Afinal, se nós não tivéssemos visto as imagens, quem acreditaria na versão do adolescente amazonense?
É exatamente por isso que a violência policial é ainda mais digna de repúdio.
A ideia de que em certos casos esta violência se faça necessária é a principal porta aberta para conivência social com os abusos.
Nada mais representativo dessa noção do que a reiterada omissão do Estado em apurar os crimes praticados pelos agentes públicos durante o período da ditadura.
A complacência com graves crimes contra a humanidade, nos quais se incluíram bárbaros desaparecimentos forçados, até hoje sem solução, estimula a noção de que, sob certas circunstâncias, a lei pode ser desrespeitada na luta contra um inimigo perigoso.
Ele pode ser chamado de terrorista, de subversivo, de traficante. Mas na medida em que se excedem para contê-lo, além do que permite a lei, agentes policiais se transformam nos mesmos marginais que pretendiam combater.
Durante os anos de chumbo, paralelamente às torturas praticadas contra os "inimigos do regime", proliferaram grupos de extermínio no corpo das polícias, conhecidos como esquadrões da morte, apoiados por empresários e comerciantes.
Alguns podiam se aliviar, enganando-se que apenas "criminosos" eram vítimas e que, afinal de contas, havia alguém sujando as mãos em nome de sua segurança.
Mas quando o limite do certo ou errado, da vida ou da morte, é conferido a pessoas armadas que conduzem julgamentos sumários na calada da noite e realizam execuções travestidas de legítima defesa, é sinal de que a sociedade perdeu o seu próprio respeito.
Uma enorme indignação popular se dirige hoje contra o acórdão do STF que postergou a entrada em vigência da Lei da Ficha Limpa.
Mas a decisão do ano anterior que manteve a anistia para agentes que cometeram crimes contra a humanidade pode ter causado um dano muito maior.
O Brasil é o único país da região que ainda se recusa a punir seus torturadores, mesmo recebendo recentemente uma condenação internacional, advinda da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Na medida em que legitimamos a ficha-suja da tortura, abrimos a porta para conviver de mãos-dadas com os excessos policiais, herdados dos anos de chumbo.

Terra Magazine

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