terça-feira, 31 de março de 2009

Um teólogo na morte


Os anjos me disseram que, quando Melanchton morreu, lhe foi oferecida no outro mundo uma casa ilusoriamente igual àquela que possuíra na Terra. (A quase todos os recém-chegados à eternidade acontece o mesmo e por isso acreditam que não morreram). Os objetos domésticos eram iguais: a mesa, a escrivaninha com suas gavetas, a biblioteca. Quando Melanchton despertou nessa casa, reatou suas tarefas literárias como se não fosse um morto e escreveu durante alguns dias sobre a salvação pela fé. Como era seu hábito, não disse uma palavra sobre a caridade. Os anjos notaram essa omissão e mandaram pessoas a interrogá-lo. Melanchton lhes falou: "Demonstrei de maneira irrefutável que a alma pode dispensar a caridade e que para entrar no céu basta a fé". Dizia isso com soberba e não sabia que já estava morto e que seu lugar não era o céu. Quando os anjos ouviram essa afirmativa o abandonaram.

Em poucas semanas, os móveis começaram a se encantar até se tornarem invisíveis, com exceção da poltrona, da mesa, das folhas de papel e do tinteiro. Além disso, as paredes do aposento se mancharam de cal e o assoalho de um verniz amarelo. Sua própria roupa já estava muito mais ordinária. Continuava, entretanto, escrevendo, mas como persistia na negação da caridade, foi transferido para uma sala subterrânea, onde estavam outros teólogos como ele. Ali ficou preso alguns dias e começou a duvidar de sua tese e lhe deram permissão de voltar. A roupa que vestia era de couro cru, mas procurou imaginar que a que tivera antes fora uma simples alucinação e continuou elevando a fé e denegrindo a caridade. Uma tarde, sentiu frio. Então percorreu a casa e comprovou que as demais peças já não correspondiam às de sua casa na Terra. Uma delas estava cheia de instrumentos desconhecidos; outra estava tão reduzida que era impossível entrar nela; outra não tinha sofrido modificação, mas suas janelas e portas davam para grandes dunas. A do fundo estava cheia de pessoas que o adoravam e lhe repetiam que nenhum teólogo era tão sábio quanto ele. Essa adoração agradou-o, mas como uma das pessoas não tinha rosto e outras pareciam mortas, acabou se aborrecendo e desconfiando delas. Determinou-se então a escrever um elogio da caridade, mas as páginas que escrevia hoje apareciam apagadas amanhã. Isso aconteceu porque eram feitas sem convicção.

Recebia muitas visitas de gente morta recentemente, mas sentia vergonha de mostrar-se num lugar tão sórdido. Para fazer-lhes crer que estava no céu, entrou em acordo com um feiticeiro dos que estavam na peça dos fundos, e este os enganava com simulacros de esplendor e serenidade. Era só as visitas se retirarem, reapareciam a pobreza e a cal; às vezes isso acontecia um pouco antes.
As últimas notícias de Melanchton dizem que o mágico e um dos homens sem rosto o levaram até as dunas e que agora ele é como que um criado dos demônios.
Jorge Luis Borges

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