Folha de S. Paulo, 15.03.2009, Artigo
O MST seria um bom exemplo a ser seguido pela esquerda americana, se
os EUA tivessem qualquer coisa comparável a ele em termos de movimento
social forte
IMMANUEL WALLERSTEIN
Parece-me que há duas situações que requerem dois planos para a
esquerda mundial, em especial para a esquerda dos Estados Unidos. A
primeira situação é o curto prazo. O mundo se encontra numa depressão
profunda, que, pelo menos nos próximos um ou dois anos, só vai se
agravar. O curto prazo imediato é o que preocupa a maioria das pessoas
que agora se confrontam com o desemprego, a redução grave de sua renda
e, em muitos casos, a perda da moradia. Se os movimentos de esquerda
não tiverem um plano para fazer frente a esse curto prazo, eles não
poderão se conectar com a maioria das pessoas de qualquer maneira que
tenha significado.
A segunda situação é a crise estrutural do capitalismo como sistema
mundial, que, em minha opinião, enfrenta sua extinção certa nos
próximos 20 a 40 anos. Esse é o médio prazo. E, se a esquerda não
tiver um plano para esse médio prazo, aquilo que vier a substituir o
capitalismo como sistema mundial será algo pior, provavelmente muito
pior, que o sistema terrível com o qual convivemos há cinco séculos.
As duas ocasiões requerem táticas diferentes, mas combinadas. Qual é
nossa situação no curto prazo? Os Estados Unidos elegeram um
presidente centrista cujas inclinações são um tanto quanto à esquerda
do centro. A esquerda, ou a maior parte dela, votou nele por duas
razões. A alternativa seria pior -de fato, muito pior. Logo, votamos
pelo mal menor. A segunda razão foi que pensamos que a eleição de
Obama abriria espaço para movimentos sociais de esquerda.
O problema com que a esquerda se defronta não é novo. Situações como
essas são comuns. Roosevelt em 1933, Attlee em 1945, Mitterrand em
1981, Mandela em 1994, Lula em 2002, todos foram os Obamas de seu
lugar e seu tempo. E a lista poderia ser prolongada ao infinito. O que
faz a esquerda quando essas figuras "decepcionam", como todas não
podem deixar de fazer, já que são todas centristas, mesmo que à
esquerda do centro?
Em minha opinião, a única atitude sensata é aquela adotada pelo
grande, forte e militante MST (Movimento dos Sem-Terra) no Brasil. O
MST apoiou Lula em 2002, e, apesar de todas as promessas que ele
deixou de cumprir, apoiou sua reeleição em 2006. O fez com plena
consciência das limitações do governo de Lula, porque a alternativa
seria evidentemente pior. Mas o que o MST também fez foi manter
pressão constante sobre o governo de Lula -reunindo-se com ele,
denunciando-o publicamente quando o governo o merecia e organizando-se
em campo para combater suas falhas.
O MST seria um bom exemplo a ser seguido pela esquerda americana, se
tivéssemos qualquer coisa comparável a ele em termos de movimento
social forte. Não temos, mas isso não deveria nos impedir de tentarmos
formar um da melhor maneira possível e fazer como faz o MST o tempo
todo -pressionar Obama abertamente, publicamente e com força-, além
de, é claro, aplaudi-lo quando ele faz a coisa certa.
O que queremos de Obama não é transformação social. Ele não deseja nem
é capaz de nos oferecer isso. Queremos dele medidas que minimizem a
dor e o sofrimento da maioria das pessoas neste momento. Isso ele pode
fazer, e é com relação a isso que a aplicação de pressões sobre ele
pode fazer uma diferença.
O médio prazo é outra coisa inteiramente. E nesse tocante Obama é
irrelevante, como o são os outros governos à esquerda do centro. O que
está acontecendo é uma desintegração do capitalismo como sistema
mundial, não porque ele não pode garantir o bem-estar da grande
maioria da população (isso é algo que o sistema nunca pôde fazer), mas
porque não consegue mais garantir que os capitalistas terão o acúmulo
interminável de capital que é sua razão de ser. Chegamos a um momento
em que nem os capitalistas prescientes, nem seus adversários (nós),
estamos tentando preservar o sistema. Estamos ambos tentando
estabelecer um sistema novo, mas é claro que temos ideias muito
diferentes -na verdade, radicalmente opostas- quanto à natureza de tal
sistema.
Pelo fato de o sistema ter se afastado muito do equilíbrio, ele se
tornou caótico. Estamos vendo flutuações malucas em todos os
indicadores econômicos usuais -os preços das commodities, os valores
relativos das moedas, os níveis reais de tributação, a quantidade de
itens produzidos e comerciados. Como ninguém sabe realmente quais
serão as flutuações desses indicadores, que mudam praticamente
diariamente, ninguém pode fazer um planejamento sensato de nada.
Em tal situação, ninguém, seja qual for sua posição política, sabe ao
certo quais medidas serão melhores. Essa confusão intelectual prática
se presta à demagogia frenética de todos os tipos. O sistema está se
bifurcando, o que significa que dentro de 20 a 40 anos haverá algum
sistema novo, que criará ordem a partir do caos. Mas não sabemos qual
será esse sistema.
O que podemos fazer? Para começar, precisamos ter clareza sobre de que
trata essa batalha. É a batalha entre o espírito de Davos (em favor de
um sistema novo que não seja o capitalismo, mas que mesmo assim seja
hierárquico, explorador e polarizador) e o espírito de Porto Alegre
(um sistema novo que seja relativamente democrático e relativamente
igualitário). Não existe mal menor aqui. É uma coisa ou a outra.
O que a esquerda deve fazer? Promover a clareza intelectual em relação
à escolha fundamental. Então organizar-se em mil níveis e de mil
maneiras para empurrar as coisas na direção certa. A primeira coisa a
fazer é incentivar a descomoditização, no maior grau que conseguirmos.
A segunda é fazer experimentos com toda espécie de novas estruturas
que façam mais sentido, em termos de justiça global e sanidade
ecológica. E a terceira coisa que precisamos fazer é incentivar o
otimismo realista. A vitória está muito longe de ser certa. Mas é
possível.
Resumindo, então: trabalhar no curto prazo para minimizar o
sofrimento, e no médio prazo para assegurar que o novo sistema que vai
emergir seja um sistema melhor, e não pior. Mas fazer este último sem
triunfalismo e com a consciência de que a luta será tremendamente
difícil.
IMMANUEL WALLERSTEIN, 78, pesquisador sênior na Universidade Yale, é
autor de "O Moderno Sistema Mundial", sobre a globalização do
capitalismo, e "O Declínio do Poder Americano".
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