quinta-feira, 26 de março de 2009

Sombras no avanço da esquerda



Pouco mais de 36% dos venezuelanos decidiram, no referendo recente, pela totalidade do povo da Venezuela ao suprimir restrições à ilimitada reeleição dos governantes do país. A consulta foi feita para legitimar a pretensão de Chávez a um novo mandato, daqui a 4 anos. Grave é o fato de que a larga proporção dos que se abstiveram expressa apenas que os que preferem a alternância de poder não demonstraram ter condições de propor ao país uma alternativa consistente ao continuísmo de Chávez. A Venezuela é, hoje, um país governado em nome dos que se omitem.
Estaríamos em face de mais uma ditadura latino-americana, não fossem as peculiaridades do que ocorre na Venezuela e se estende à Bolívia e ao Equador. A notícia que vem sendo difundida pela imprensa desde o ano passado, de que as novas constituições e as mudanças constitucionais nesses três países são obras de um professor espanhol de direito, da Universidade de Valência, Roberto Viciano Pastor, propõe que se reveja, com outros olhos, a dinâmica do que vem sendo chamado de nova esquerda na América Latina. O que ocorre na Venezuela é apenas a ponta de uma ampla transformação política em andamento na região.
Viciano Pastor, de farda negra, já estendeu o braço direito em saudação fascista ao ditador da Espanha, o falecido generalíssimo Franco. Vem da direita católica ultramontana, pertence hoje ao Partido Comunista Espanhol e faz parte de uma entidade que se dedica à gestação e assessoramento de mudanças constitucionais na América Latina. A mobilização política se dá em nome dos novos sujeitos da ação política. Não só os que foram marginalizados ao longo da história latino-americana pelo modelo de Estado e de partido político que é basicamente expressão do legado da Revolução Francesa, mas os que foram marginalizados e subestimados pela esquerda marxista, como os camponeses e os índios. Deprecia a democracia representativa e propõe a manifestação plebiscitária de um poder popular articulado em torno de um presidencialismo concentrador, forte e continuísta. A ideologia dessas orientações é antidemocrática e integrista, de um autoritarismo dissimulado na mecânica das reeleições e na mobilização dos pobres e desvalidos como novos sujeitos de referência, de direitos e de ação política.
Em boa parte, a possibilidade dessa cruzada de direita dissimulada de esquerda no discurso verbalmente radical, nacionalista ou regionalista e anti-imperialista, surgiu com o fim da Guerra Fria e seus efeitos devastadores para os partidos comunistas, sobretudo aqui, em que sempre foram fracos. A esquerda latino-americana em boa parte o era porque aprisionada na polarização do confronto Leste-Oeste, reduzindo todos os descontentamentos sociais, até de quem proletário não era, à visão de mundo do proletariado teórico de Marx. O fim da polarização ideológica internacional suprimiu as mediações políticas dos muitos e diferentes descontentamentos sociais deixando a massa dos insatisfeitos livres de enquadramentos políticos postiços, mas ao mesmo tempo à mercê de novas ideologias e de novos demagogos de algum modo identificados com os movimentos populares ou até deles oriundos.
Na era que se abriu com o fim da Guerra Fria, há duas grandes tendências ideológicas influentes no aparelhamento e no direcionamento dos descontentamentos sociais latino-americanos e não só a do grupo espanhol influente na Venezuela, no Equador e na Bolívia. Também originário da direita católica, há o amplo leque de influência ideológica e política dos seguidores do falecido Louis Althusser. Era ele um francês nascido na Argélia, que fora militante da juventude católica. Tornou-se comunista e promoveu uma releitura da obra de Marx que, justamente, a priva do seu princípio constitutivo, o princípio da contradição. Ela a reduz a um sistema de classificações conceituais que nega a práxis e sua historicidade social e politicamente transformadora nas sobredeterminações de instâncias com relativa autonomia, como a ideologia e a religião.
O pensamento althusseriano se difundiu na América Latina a partir da França e da esquerda francesa e se difundiu também no meio católico, especialmente entre teólogos, a partir da Bélgica, da Universidade de Louvain, uma universidade católica. Essa outra tendência foi formativamente influente no surgimento e ascensão do PT, no Brasil, na Nicarágua sandinista e, agora, no Paraguai. Não é casual que o MST no Brasil, que tem como referência teórica e doutrinária a obra de uma discípula de Althusser, atue como partido político e preconize as mesmas soluções políticas integristas viabilizadas pelo grupo espanhol para a Venezuela, o Equador e a Bolívia.
Essas reorientações teóricas e ideológicas, que nos vêm, na verdade, da grande tradição do pensamento conservador, se complicam num cenário político em que as demandas sociais interpelam a sociedade legada pela dominação colonial e pela escravidão. São demandas de esquerda porque questionam as estruturas sociais injustas, as iniquidades que se renovam, a economia que não gesta transformações nem viabiliza uma sociedade nova, de desigualdades sociais no mínimo atenuadas. Mas as respostas oriundas desse neoautoritarismo, que se materializa nos governos da nova esquerda latino-americana, têm sido, na verdade, respostas de direita. O integrismo que as norteia propõe uma refundação da sociedade e não sua transformação. Quando o MST fala em 500 anos de latifúndio, remete-nos para a negação da história já feita e realizada e não se revela capaz, como também ocorre com o PT e vem ocorrendo com os governos desses diferentes países, de propor um projeto histórico em que a mudança se dê pela superação das contradições que geram a pobreza e a injustiça. O discurso sobre os novos sujeitos não redistribui possibilidades de mudança e de esperança. Redistribui as injustiças pela troca de lugar social de suas vítimas e não pela superação das causas das iniquidades sociais.
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José de Souza Martins é sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da USP. Entre seus livros mais recentes, Retratos do silêncio, Sociologia da fotografia e da imagem e A sociabilidade do homem simples. Este artigo foi originalmente publicado em O Estado de S. Paulo, 22 fev. 2009.

de Gramsci e o Brasil

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