Abertura da Conferência sobre “O fim do capitalismo”, organizada pela Attac-Alemanha, põe o dedo na ferida de democracia e levanta possibilidade de um “novo socialismo”. A Carta Maior acompanhou a abertura do evento, na Universidade Tecnológica de Berlim.
Flávio Aguiar
“Um outro socialismo é possível?”: esta pergunta, que parodia o lema do Fórum Social Mundial (“Um outro mundo é possível”), rondou toda a abertura da Conferência sobre “O fim do capitalismo” (“Kapitalismus am ende?”), aberta na sexta feira, 06 de março, no salão de atos da Universidade Tecnológica de Berlim. A Conferência, organizada pela ONG Attac-Alemanha, já contava com bem mais de 2000 participantes, que lotaram o anfiteatro da universidade. Nesta ocasião, como em outras manifestações ou ocasiões semelhantes, a constituição do público chamava a atenção pelas faixas etárias que dominavam a cena. Estavam maciçamente presentes a jovem guarda (menos de 30) e a velha guarda (mais de 50). É claro que esta é uma observação estatística feita pelo “data-olho”, mas é significativa, de todo modo.O mote da abertura foi o tema mesmo da Conferência como um todo. Uma palestra e uma mesa redonda abriram o evento. A palestra ficou por conta de Heiner Flassbeck, Economista-Chefe da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento), em Genebra, e professor honorário da Universidade de Hamburgo. A mesa foi constituída por Saskia Sassen (professora que lecionou em Chicago e Londres), Daniela Dahn (jornalista e escritora da Alemanha), Frank Bsirske (também da Alemanha) e Aleksandr Buzgalin (professor de economia da Universidade de Moscou). Todos destacaram que, entre as raízes da presente crise financeira que se abate sobre o mundo inteiro, está a falta de democracia nas decisões políticas que orientam (ou desorientam) as economias e as finanças mundiais.Heiner Flassbeck destacou que o mundo dos investimentos financeiros e sua hegemonia aguçada depois do fim da Guerra Fria subordinaram a política e transformaram a economia num gigantesco cassino, onde todos, aparentemente, poderiam ganhar muito e mais. Mas isto, ele sublinhou, foi provocado por decisões de natureza política, e tomadas, em nível de governo, sem qualquer forma de transparência, fosse de modo pró-ativo ou por omissão. Deu exemplos, como se alguém tinha consultado o povo húngaro sobre a conveniência de investir boa parte das finanças do país no mercado dos francos suíços ou no da Islândia. Idem, na Alemanha, sobre investimentos no mercado irlandês ou no norte-americano, que começou a derrocada. Também destacou que no mundo financeiro a falta de idéias sim, era globalizada: todos faziam a mesa coisa, esperando que os investimentos trouxessem lucros líquidos de até 25% ao ano.Não se tratava apenas de ambições pessoais, sublinhou, embora isso estivesse presente e fosse o canto da sereia para muita gente. Houve decisões ou omissões políticas que empurraram as coisas nesta direção. Ao mesmo tempo, se continha a capacidade de intervenção dos estados em nome de conter os gastos públicos e evitar a inflação. Mas o verdadeiro problema é o que vemos agora: a deflação, ao invés da inflação; aquela se tornou agora sinônimo de depressão (coletiva e pessoal). Disse que não houve apenas uma crise do sistema subprime norte-americano; as coisas começaram por aí, mas o que aconteceu é que o cassino ruiu por inteiro. Ruiu, mas não faliu: muita gente ganhou dinheiro com isso, porque o Cassino deve ser pago, sempre. O que fazer? Recondicionar os Estados, pois só eles podem construir mecanismos de estabilização consistentes. Não se trata de reformar o cassino financeiro, mas de fechá-lo e de fechar todos os seus compartimentos, mudando a orientação da política econômica em direção de mais cooperação e também do que chamou de “aprendizado mútuo”, pois, disse ele, uma das características desse momento é a de que as pessoas que detém a possibilidade de mando ficam no fundo repetindo as mesmas coisas, pois lhes faltam idéias.Passando à mesa, Saskia Sassen abriu a discussão com uma fala muito provocativa a respeito da natureza da crise. Disse ela que houve, na verdade, uma sucessão de duas crises. A primeira ocorreu em agosto de 2007, quando algumas quebras de bancos e instituições congêneres provocaram o que chamou de uma crise de “ansiedade dos financistas”. Essa crise, alimentada pelo medo e por uma espécie de “covardia”, degenerou em pânico, quando, em setembro de 2008, houve uma escalada de vencimentos, provocada pelo temor de que ninguém viesse a realizar recebimentos, o que de fato aconteceu. O montante dessa “bola de neve” é de espantar: 62 trilhões de dólares. Esse dinheiro, disse ela, simplesmente não podia ser pago porque “não existia”. A “quebrança” foi geral.Essa situação provocou dois tipos de debate nos Estados Unidos, e, segundo ela, o presidente Obama, que aprende rápido, está com cada uma de suas faces voltada para cada um dos lados. O primeiro debate focaliza uma solução financeira para a crise. Ajudar os bancos, por exemplo. O segundo debate focaliza mudanças da “infra-estrutura social”: melhor distribuição de renda, por exemplo. Segundo ela, o nível de pobreza atingiu níveis inéditos nos EUA. É claro que, diz ela, o segundo debate é o prioritário. Mas não se pode descartar completamente o primeiro. Se não se deve injetar mais dinheiro em bancos, é necessário salvar os fundos de pensão, porque deles depende a aposentadoria dos trabalhadores. Questionada sobre a posição de Obama, respondeu que o presidente mostrou-se sensível ao foco do segundo debate. Mas é verdade, disse ela, que ele não teve tempo, durante a campanha, de deter-se sobre a crise. Ela o atropelou em meio à campanha. Ele acabou fazendo algumas escolhas erradas, como, por exemplo, a de nomear Larry Summers como Presidente do Conselho Econômico da Casa Branca. Summers foi Secretário do Tesouro de Clinton, e é desses economistas que “só tem um olho”, o que vê as finanças.A seguir falou Aleksandr Buzgalin. Disse que a crise não é financeira, ela é tudo: é social, cultural, econômica e política. A crise tem também um lado “pessoal”. “A vida de todo mundo vai mudar”, ressaltou, “um novo tipo de vida está por vir”, mas não sabemos qual seja. Tudo isso é sinal de que o capitalismo chegou “a um beco sem saída”. Quanto isso vai durar, não se sabe. O beco sem saída do capitalismo está representado pelo gasto cada vez maior com coisas inúteis, símbolos de status e nada mais. Na Rússia quem tem dinheiro freqüenta os restaurantes mais caros em busca de respeito, de “consideração social”. Até as guerras entraram nessa espiral de gastos. A saída dessa situação está num “novo socialismo” (aplausos generosos da platéia!). É necessário socializar a economia, mas não do modo como o fez o antigo regime soviético. Sim, deve-se pensar em fortalecer o Estado, mas perguntando-se ao mesmo tempo a quem serve o Estado. Sem a construção de uma democracia de base (“grassroot democracy”), de nada adianta socializar nada. Também é necessário ter consciência de que um movimento nessa direção vai contrariar os interesses do “ruling people” (ele falou em inglês), os que dirigem o poder, a mídia, e que querem continuar governando a opinião das pessoas.Daniela Dahn, que viveu muito tempo na antiga DDR (Alemanha Oriental), começou fazendo uma crítica do processo de reunificação da Alemanha, embora fosse, é claro, favorável a ela. Disse que o processo de reunificação simplesmente transformou a antiga DDR numa cópia da Alemanha Ocidental, e numa cópia de qualidades problemáticas. Impôs-se a lógica da eficiência capitalista, o que significou desemprego. “O capitalismo”, disse, “deve ser impedido de continuar a ser ele mesmo”. “O socialismo, de certo modo, falhou. Mas então ele deve ser repensado, no sentido de combinar algum tipo de propriedade coletiva com democracia”. A regulação das relações econômicas só terá sentido e vez se tiver a oportunidade de ser implementada com democracia”.Finalmente, falou Frank Bsirske, conhecido sindicalista alemão que foi da Juventude Socialista e também do movimento político Alternativa Verde em Hannover. Seu mote sobre a crise retomou a fala inicial de Flassbeck. “Muita gente não sabia de muita coisa”, lembrou, assinalando que quase ninguém sabia, por exemplo, que 18,5 bilhões de euros do sistema bancário alemão estavam investidos na Irlanda, que quebrou.Quase ninguém tinha consciência, lembrou também, que o sistema bancário e financeiro da Alemanha tinha sido “ajustado” ao norte-americano. Esse ajuste implicava a espiral de vendas de créditos e dívidas, como nos Estados Unidos, envolvendo companhias seguradoras e de crédito. De uma hora para outra, coisas como essas, “sobre as quais quase ninguém sabia muito”, e sobre que, na verdade, ninguém tinha muita idéia do que se tratava, provocaram uma perda súbita de 5 bilhões de euros no sistema bancário alemão. Mas a crise não é apenas financeira. Há um acúmulo de crises: financeira, de pobreza, de fome, no meio-ambiente, há uma crise militar permanente. Hoje temos consciência de que não se pode continuar assim. Mas durante décadas houve o convencimento generalizado em torno das privatizações, da promoção dos valores do mercado e da condenação do Estado como o vilão da história. Agora nos vemos na contingência de buscar de novo formas de regulação econômica. Mas isso só terá proveito se vier acompanhado por formas de aumentar a remuneração real do mundo do trabalho.A Conferência prosseguiu no sábado e no domingo (7 e 8 de março) com outras 91 atividades, muito no formato do Fórum Social Mundial. Não deixa de causar uma certa perplexidade o fato de que, nem vinte anos depois de se constatar (e muitos comemoraram) o fim do socialismo, volte a se discutir de modo tão aberto e veemente a perspectiva de superação do capitalismo.
Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior.
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