segunda-feira, 4 de maio de 2009

Bacharelismo, Capanga e Gritos


O professor propôs aos alunos um exercício de crônica não presencial diante dos últimos acontecimentos. E sua pior aluna rabiscou mais ou menos o que segue.
Foi assim. Ele mirou-se no espelho e disse: “A Justiça sou Eu!...” Fez com convicção, ou melhor: sua autoconfiança no poder ilimitado que imaginava possuir já ultrapassara o nível da consciência racional. O presidente da suprema corte vivia em estado de transe, no trânsito livre entre os três poderes, no pontificado das meias-verdades sopradas como vento aos holofotes da mídia, no intervencionismo jurídico de todo dia, nas frases feitas do senso comum convertido em opinião abalizada, que se bastavam a si mesmas pelo tom e impostura própria de um magistrado que se sabe na terra dos coronéis-bacharéis. Palavras encenam o teatro de sentenças transadas em julgado. Tipo: “O país caminha celeremente para um Estado policial”. Ou então: “O gabinete de Justiça-sou-eu foi grampeado”.
E era assim um festejo para os fabricantes de fatos. Prejulgamento, antecipação de voto, opiniões assertivas sobre o legislativo e o executivo, pitos de bedel endereçados ao presidente da República e a ministros de Estado. Vinha esse novo chefe máximo da magistratura superando-se a cada dia, no sentido de fazer do terceiro poder o primeiro em protagonismo e também em cinismo. Batera alguns recordes de antecessores no atendimento a recursos de habeas corpus de mandões. Se a lei se arrepiasse como gato na tuba, se juízes do “baixo clero” chiassem, se a opinião pública se chocasse, que importa? “Lex, ora lex!... La Justice, c’est moi!...”, repetia o Chefe diante do espelho, misturando verbo e idiomas, mas ainda sumamente convicto, mesmo que a imagem já surgisse manchada por fungos invasores que teimavam em assolar a mansão do Grande Lago e turvar a reflexão em estado puro do enorme espelho funcional... Isso já um pouco ébrio, é verdade, ébrio do poder quase soberano que abocanhara, mas também da dose dupla que lhe pusera na mão um dos capangas.
- Capanga?!!! Mas que anacronismo, senhor Presidente!... O senhor não tem moral para falar em capanga. Aliás, se capangas há em algumas províncias do interior profundo, isso são reminiscências de priscas eras e malvados costumes. Atrasos inevitáveis de país tão vasto e desigual. Eu lhe garanto, e aqui fala um estudioso da história do Brasil, não há capangas em Brasília. Houve candangos, Vossa Excelência confunde!... Capangas no more, aliás nunca, never. Em Brasília, Paraíso do Paralelo 15, somente homens de bem. De bem com a vida. Capazes, muito capazes. Jamais capangas.
- E mais: se a impunidade dos donos do poder é regra, isso não é culpa do Judiciário, nem do Supremo Teatro Federal. Aqui seguimos apenas à risca os mínimos ritos. Desarrepiem-se súmulas e acórdãos. Verifiquem-se. Cumpra-se. Ritos sumários quando se trata do benefício a homens de bem, porque acima de tudo os indíviduos e seus direitos. E sumidos quando se trata da sociedade, porque abaixo de tudo os elementos, os comboios de desvalidos amontoados no anonimato da vida nua. Ritos sumidos. Há já farta jurisprudência a colecionar.
E para conter a fúria punitiva de rábulas, de procuradores insensatos, de Ministério Público “populista”, nada melhor que um Pacto Republicano consignado com os presidentes desmoralizados do Senado e da Câmara, com o presidente da República para quem os conflitos mais profundos da política e da sociedade cabem todos na sempre idêntica e arquigasta metáfora futebolística. Se futebol é nossa segunda natureza, tudo que se pode parecer a ele é bom para o “funcionamento da democracia”. Com o pacto, blinda-se o fosso que já separa secularmente poder e sociedade. Reforçam-se as ameias dessa Brasília autista. Inalcançável para as massas, que permanecerão sem biscoito fino, excluídas da cidadela, no limbo da pré-cidadania. Cerra-se o pacto e do lado de fora os patos ficam, os bestializados de ontem e de agora.
Mas na manhã de um aniversário melancólico, quando Justiça-sou-eu acordou sem sessão plenária para celebrar seu primeiro ano de pontificiado, o espelho funcional amanheceu trincado numa das bordas. E ao mirar-se para a pergunta de praxe: “Espelho, espelho meu, há alguém mais justo que eu?!...”, viu num átimo que sua cara desaparecera, e lá despontava do país-além-dos-espelhos um rosto negro, sóbrio, severo, que apesar dos olhos diminuídos pela miopia guardava olhar gigante, e uma voz altiva, passionária, desrespeitosa, anti-bacharelesca, voz que ressoava sim a das ruas, mas não dispersa como esta, antes compacta, voz que talvez destampasse a fúria de séculos de opressão, e portanto assustadora porque deslocada, estranha na sua presença naquele puro reflexo, naquele relâmpago fugaz, e incômoda e precisa e repetida e tão desrespeitosa como a imagem do homem negro que a pronunciava: “- Respeito!...”
E lá na longínqua Roraima, nas terras da Raposa do Sol, indígenas brasileiros dançavam em círculo ao anoitecer daquele dia, renovando o rito suado de sua milagrosa sobrevivência.
E pela internet multidões de correspondentes trocavam excelências. Sabiam ainda, muitos, recitar essas antigas cantigas fúnebres. Com todo o respeito. Não se enterravam pessoas. O cadáver desta feita era o da suprema comédia federal. Comédia macabra dos podres poderes. Bacharelismo, capanga e gritos. Excelências revezaram-se por toda a noite.
Justiça-sou-eu resolveu deitar mais cedo. Estava macambúzio. Bebera um trago a mais. Iniciativa própria. Sonhou com capangas.

Por Francisco Foot Hardman
Escrito inicialmente para o jornal O Estado de S. Paulo, este artigo permanece inédito.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...