sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

O Tira Vidas II

Duciran Van Marsen Farena

Procurador Regional da República

Em 2010, por ocasião do crime de trânsito que ceifou a vida da defensora pública Fátima Lopes, escrevi um artigo com o título acima (agora, nesta sequência trágica que parece não ter fim, rebatizado como O Tira Vidas II). Naquele artigo, relatei o caso, ocorrido em outro estado da federação, que me havia sido contado por um conhecido. Reproduzo um trecho:

“Um playboy, de boa família, aluno de tradicional colégio, embriagado, atropelou e matou duas pessoas da mesma família. Não prestou assistência; a placa de seu veículo (…) esportivo (…) fora anotada pelo motorista do carro de trás, revoltado com a selvageria”. Com a ajuda de advogados pagos com o dinheiro que foi negado à família da vítima, acabou ‘condenado à liberdade’.


Assim, “nunca deixou de levar sua vida normal, frequentar bares, boates, baladas, etc. Logo após acabado o incômodo do processo, o rapaz convidou os amigos para uma comemoração. E ali, após algumas doses, confidenciou que costumava, para si mesmo, batizar seus carangos com nomes – e o do acidente, prestes a ser trocado, havia sido denominado “o tira vidas”.



A tragédia se repete. Com contornos ainda mais graves. Enquanto o artigo de 2010 reclamava mais e mais frequentes fiscalizações com bafômetro, para estancar o massacre dos tira-vidas, no fatídico sábado passado (21/01) foi atropelado Diogo Nascimento de Souza, ser humano decente, trabalhador honrado, agente da lei, que ganhava o sustento de sua família varando noites em blitzes da Lei Seca, tentando impedir que tira vidas alcoolizados provocassem mais luto e dor numa cidade já tão ferida por episódios semelhantes. E foi atropelado por um deles. Morreu no dia seguinte, domingo, quando o céu de João Pessoa, sempre azul, vestiu-se de luto e chorou a perda.



Era noite de sábado, mas Diogo Nascimento de Souza não descansava. Trabalhava, enquanto tantos se divertem, e alguns se excedem. O dever de Diogo era evitar que o excesso de alguns pusesse em risco a vida deles próprios e dos outros. Acenava para o cumprimento da lei, mas uma máquina – máquina exclusiva, diferenciada – indignou-se com aquele aceno, considerando-o uma ousadia intolerável, já que deveria orientar-se apenas para os calhambeques.



E avançou. Como é da sua natureza de Porsche.



Diogo tropeçou no céu como se fosse um dos bêbados que parava. E flutuou no ar como se fosse pássaro. E se acabou no chão feito um pacote flácido. Agonizou no meio do passeio público. Morreu na contramão atrapalhando o sábado. Ou melhor, morreu no domingo porque atrapalhara o sábado de um carro de luxo. A sina do trabalhador brasileiro. Especialmente dos que se atrevem a se colocar no caminho de possantes. Apenas um obstáculo a ser removido. Ao custo de um passeio interrompido, um para-brisas quebrado, uma corrida de volta ao aconchego de uma garagem quentinha e coberta.



O Porshe foi identificado porque na violência do choque deixou a placa para trás. Foi apreendido.



O condutor teve melhor sorte. Com ordem de prisão expedida, nem sequer chegou a suportar o incômodo que o playboy do artigo original passou – uma noite na delegacia, depoimento, esperar sentado num banco duro, bebendo água em copo descartável, a liberação mediante fiança. Foragido, foi beneficiado com um habeas corpus concedido pelo desembargador plantonista às 3 horas da madrugada de domingo, enquanto Diogo agonizava no hospital em que veio a falecer. Decisão questionável, não apenas porque privou a autoridade policial de saber qual o verdadeiro estado do condutor logo após o fato, mas pelo horário absolutamente inusual, até mesmo para plantão, em que concedida – à parte o fato de que o autor da decisão já nem sequer seria o plantonista àquela altura.



Já disse em outro artigo que as famílias das vítimas no Brasil suportam um peso duplo. Pois não é só a dor da perda, da saudade do ente querido, afligem-se também com o temor da injustiça. O processo é demorado, o esquecimento milita em favor do responsável. A justiça é vista como parcial, e decisões como a que liberou o responsável sem que ele sequer tenha se dado ao trabalho de aparecer não ajudam em nada a desfazer esta crença. Por isso mesmo as famílias revivem a dor da perda, a cada dia, sendo obrigadas a confeccionar camisas, fazer manifestações, e até mesmo pagar outdoors pedindo justiça – porque não crêem em nossas instituições. Cada vez que um parente enlutado é obrigado a segurar uma faixa na frente do fórum, é novamente vítima, vítima da agonia de ter que lembrar o crime, vítima do horroroso medo de que o culpado sairá impune.



Enquanto isso, o esquecimento é tudo que o culpado quer. Como escrevi no “Tira Vidas I”, todos têm algo em comum: “o desejo de fugir de sua responsabilidade, retornar à vida normal o mais rápido possível, esquecer o episódio do qual também se consideram ‘vítimas’. A dor, o sofrimento, a ausência, são privativos da família enlutada. Nada trará de volta o ente querido, certo? Porque, então, querer destruir a vida de um pobre rapaz, com toda a vida e futuro pela frente? Vingança? Que sentimento mais feio!”.



Nas redes sociais, pessoas crédulas e caridosas expressaram o desejo de que o Porshe fosse vendido para ajudar no sustento dos filhos da vítima. Gostaria que fosse verdade, mas não é esta a receita que costuma se ver nesses casos. Por mais abastado que seja o atropelador, ou sua família – ou quanto mais abastado – nas ações de reparação, a regra é caracterizar o pedido de indenização como ganância, ambição ou oportunismo dos parentes, que não tem escrúpulo em explorar sentimentos nobres com fins de lucro. E assim agregam mais dor e sofrimento aqueles que já sofrem todos os dias. “Estão me processando só porque sabem que minha família tem dinheiro”, lamuriam-se os privilegiados, sensíveis demais para suportar uma noite na delegacia, mas neste ponto reivindicando tratamento igualitário aos pobres, que vão para a cadeia mas não sofrem ações civis porque nada têm. Eike Batista ia nesta linha, quando o Porshe de seu filho atropelou e matou um ciclista. Só fez acordo porque a história se espalhava e ficava mal à sua imagem de futuro homem mais rico do mundo (espero que a família tenha recebido antes da falência…).



Em um país verdadeiramente civilizado, o tratamento ao rico seria o mesmo dispensado a todos. A fuga do local do crime seria motivo para negar-lhe a desmerecida liberdade e a tentativa do responsável – intermediado por seus defensores – de caracterizar como ganância a luta das famílias por reparação somente teria o efeito de aumentar o valor da indenização. Enfim, o esquecimento em nada aproveitaria ao réu, porque o processo é rápido.



No Brasil, infelizmente, raro é quando acontece o contrário. Ainda tenho esperanças, mas a realidade é dura – para quem tem o sentido inato de justiça, e muito mais para a dolorida família da vítima – quando o responsável é rico e poderoso. Por isso mesmo temos a obrigação de não deixá-los sós, temos a obrigação de não esquecer. Apelo aos valorosos colegas do Ministério Público do Estado da Paraíba para que dediquem seus maiores esforços e capacidades em prol da condenação do responsável por homicídio doloso. Eu de minha parte, tenho a firme intenção de não mais consumir qualquer produto ou serviço com a marca “São Braz” até que a justiça julgue o responsável, aplicando-lhe a devida punição, até que a família da vítima seja devidamente reparada mediante acordo judicial, e até que os cofres públicos estaduais – que irão suportar a pensão paga à família – sejam devidamente compensados.



Lamentavelmente, permanece mais atual que nunca a conclusão que escrevi no “Tira Vidas I”:



“Eles estarão sentados no banco dos réus, a face compungida, a postura estudada, o modo sério. Eles evitarão olhar para os acusadores, para a família da vítima – e quando o fizerem, por um breve momento, será um olhar triste e interrogativo: “porque estão fazendo isso comigo? Porque este escândalo indecoroso, já não estou sofrendo o bastante? Já não tive que gastar tanto com advogados? Em que meu sofrimento lhes aproveita?” Eles serão rapazes de futuro, profissionais, noivos, filhos de família, pais de família. Pessoas a quem jamais negaríamos uma segunda chance.



Mas não nos iludamos. Eles são os tira-vidas”.



Paraibaja.com


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