terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Ocupações e depredações: violência do oprimido?

Por Coletivo Transição, agrupamento de ativistas.

Não somos pacifistas, mas tampouco fazemos apologia da violência. Diante do ocorrido no processo de desocupação negociada em dois dos mais de dez prédios da UFPE, uma reflexão e um balanço crítico é extremamente necessário aos militantes, ativistas e todos os que se opõem ao avanço da avalanche privatizadora e destruidora dos direitos sociais e humanos no Brasil, intensificada a partir do golpe parlamentar, jurídico, midiático e empresarial com a subida de Michel Temer ao governo federal.

É de conhecimento público, especialmente após o bombardeio da mídia comercial, que as condições encontradas no CFCH e no CAC após a desocupação foram extremamente adversas. Os prédios foram os únicos a serem entregues em condições piores do que estavam no momento da ocupação. Um fato “curioso”, caso observemos a conjuntura das outras ocupações da universidade e até do restante do país. Não cabe a nós aqui estabelecer uma lista inquisitória sobre o ocorrido, mas buscar analisar o fato.

Não há ganhos à militância e ao movimento estudantil com as depredações (quebra de vidros, móveis e furtos de livros e equipamentos) de salas de professores, coordenações, secretarias e de grupos de estudos e pesquisas, ainda que precisemos perceber que houve um certo direcionamento nelas, expressando uma orientação para a revolta, já que não foram depredadas todas ou a maioria das salas do CFCH (ou CAC). Os locais, a intensidade e a forma como que cada depredação aconteceu em cada um dos diferentes locais específicos deixa pistas de contra quem e contra o quê se estava reagindo, ainda que de maneira ineficiente e problemática.

É preciso compreender os motivos que levam estudantes em carências e sofrimentos na universidade, diretos e difusos, a se comportar como o fizeram. Especialmente quando vivenciam vários períodos em contato com mentes e condutas violentas e assediadoras. As “micro-hierarquias” das relações de poder cotidianas, inextricavelmente ligadas às “macro-hierarquias” sociais, também se expressam nas salas de aula, nas filas de um insuficiente Restaurante Universitário, nos cortes de bolsas e da assistência estudantil, nos processos administrativos e monitoramento dos estudantes, nas reuniões colegiadas e nas demandas à reitoria. A violência simbólica (associada a outras não tão simbólicas) é tão mais eficiente quanto menos precisa recorrer direta e explicitamente à violência física. É tão mais eficiente quanto mais utiliza dessa mesma violência física seletiva e cirurgicamente organizada, procurando chamar o mínimo de atenção, mas existindo real e efetivamente contra os que excedem os limites do aceitável para uma estrutura restritiva e privatizadora de direitos.

Todavia, no contexto das ocupações, um movimento coletivo e de classe, o tipo de reação com depredações como as que vimos só traz prejuízos, de várias ordens. A ofensiva da mídia comercial e institucional e das organizações de direita é imediata, e contra elas não há chances de uma contraofensiva de mesma proporção que, sem concordar em nada com as depredações, busque entender o ocorrido e ao mesmo tempo não o universalize, nem reduza unilateralmente o movimento global das ocupações a ele. Nossos canais têm alcance ínfimo quando comparados à mídia corporativa. A contraofensiva ainda fica mais prejudicada por não haver justificativas plausíveis para o ocorrido. Não é uma ação tática progressiva, não ajuda na mobilização das bases estudantis e não ajuda no combate ideológico das ocupações como espaços legítimos e avançados de luta. Ao contrário, só colabora em jogar gasolina em corpos vulneráreis diante das ações da Polícia Federal. Como convencer estudantes a se somar na nossa luta em 2017 se as depredações e furtos aparecem para muitos (ou a maioria) como o único “balanço das ocupações”? Um balanço geral das ocupações, seus acertos e erros, suas conquistas, vitórias e seus limites, contribuirá para essa tarefa. É urgente e necessário que este documento seja elaborado pelo Ocupa UFPE.

Reprovamos tais danos e furtos do patrimônio público por percebermos que eles acarretam prejuízos graves à comunidade universitária – patrimônio popular em última instância, ainda que muitas vezes privatizado por alguns – e trazem apenas benefício individual para algumas pessoas. Ou seja, os depredadores, entendendo reagir a uma violência real e na maioria das vezes difusa e institucional, acabaram reproduzindo o que criticam. Ironia das ironias: de um suposto coletivismo a um individualismo dito autonomista (mas afetivamente ligado ao liberal).

Tais atos não ajudam – na verdade, prejudicam – a construção de uma militância efetiva, radical, independente e de base. O dinheiro público que tanto pressionamos, durante as reuniões com a direção e a reitoria, para que fosse utilizado na melhoria da infraestrutura dos Centros mais desfavorecidos, agora deverá ser utilizado para tapar os buracos deixados.

Ainda haveria mais a analisar: as mensagens e justificativas para as depredações, que ficaram gravadas nas paredes, ou na pele do CFCH: “Por aqui passou a revolta popular!”, “Stalin matou pouco!”, e por aí vai. As orientações ideológicas extremamente heterogêneas dos estudantes, suas diferentes experiências sociais, suas vinculações políticas diversas etc., podem nos ajudar em algo aqui, aliado a certo “espírito do tempo”. As derrotas sociais multidimensionais efetivas e em progressão do trabalho contra o capital, a vitória do cinismo sobre a transparência (ou o casamento inseparável entre segredo e democracia liberal), a descrença generalizada na política institucional, o oportunismo eleitoral do espetáculo que tem como contra-face e complemento um sectarismo auto-proclamatório estéril, alimentam um individualismo niilista existencial evidente e parecem ser aspectos desse “espírito do tempo”. Com o declínio das “grandes utopias”, e o esgotamento dos “reformismos sem reformas” e da política das conciliações manipulatórias, que tem no Brasil o PT como grande representante (ainda que não o único), para muitos restam as mudanças moleculares cotidianas muitas vezes alçadas a redenções políticas espetaculares com um viés “artístico” ou “estético”, mas fugazes. Como se as ocupações fossem o momento decisivo e final da vitória definitiva da liberdade plena. Além de várias outras vertentes políticas, subsistem e convivem, não sem problemas e com um impacto não completamente desprezível, espécies de um autonomismo individualista e dogmático e um neo-stalinismo retrógrado e violento, parecendo indicar que nossa luta emancipatória ainda está mesmo em estágios fundamentalmente incipientes. Uma síntese política entre autodiscipina militante e democracia ativa parece difícil de conquistar e é um dos desafios estratégicos de nossa época.

Mas há também uma riqueza real e potencial em muitas das experiências esboçadas nas ocupações: rigor no combate às pequenas relações de desigualdade de gênero, raça, classe e sexo; autogestão dos espaços; liberação sexual e dos corpos; mensagens e expressões artísticas e políticas, como muitas das pichações no térreo do prédio do CFCH; deliberações coletivas e busca de uma divisão de trabalho não hierárquica, etc. Apenas as avaliações superficiais podem condenar e reduzir os estudantes a vândalos e criminosos ou celebrar as depredações mencionadas como manifestações progressivas.

Ainda, gostaríamos de ressaltar que as ocupações trouxeram ganhos reais ao movimento estudantil e à comunidade universitária, como a criação de grupos de trabalho paritários (com igual participação de professores, estudantes e técnicos) sobre orçamento, novo estatuto universitário, assistência estudantil e transparências nas contas da UFPE. As práticas supracitadas de depredações não se coadunam com a práxis de quem luta pelo fortalecimento de uma universidade pública, gratuita, de qualidade e, sobretudo, popular.

2017 se apresenta como um ano que nos cobrará ainda mais, e teremos que responder à altura aos ataques neoliberais do Estado. Entretanto, teremos que saber como responder. Avante na luta contra a retirada de direitos, pela unidade das esquerdas socialistas e combativas e pela democratização das universidades públicas.


Blog Síntese


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