quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

‘Quem criou a facção foi o chamado ‘Estado organizado”, diz padre que fiscaliza penitenciárias

O ano começou com o maior número de mortos dentro de uma penitenciária dos últimos 24 anos, no Brasil. Com uma população carcerária de 711.463 presos – um aumento de 270% nos últimos 14 anos, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) – o Brasil é o quarto país que mais prende no mundo, ao mesmo tempo em que arrasta uma grave crise do sistema prisional há anos. Uma rebelião iniciada no domingo (1º), no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, terminou com 56 mortos, dezenas de feridos e acendeu a luz de alerta em vários estados do país.

Fernanda Canofre

Para especialistas ouvidos pela reportagem do Sul21, a situação do Compaj se repete por todo o Brasil. Presídios operando muito além de sua capacidade prisional, problemas com prestação de serviços, falta de controle na entrada de armas e drogas e crescimento do poder das facções é uma realidade comum nos presídios do país.

O jogo de empurra-empurra entre as autoridades, desde a chacina, também não é novo. Enquanto o secretário de Segurança Pública do Amazonas, Sérgio Fontes, disse que a questão do narcotráfico, que estaria por trás da rebelião, “é um problema do governo federal”; o ministro da Justiça, Alexandre Moraes, declarou que “uma série de erros ocorreu” e que houve “falha de fiscalização” por parte do presídio. Já o presidente Michel Temer (PMDB) ainda não se pronunciou publicamente sobre o caso.

A versão oficial para a rebelião que durou 17 horas e terminou com uma chacina de corpos esquartejados, no entanto, é de que o episódio seria mais um capítulo da “guerra de facções”. Uma disputa entre o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo e que já estaria presente em estados do norte e nordeste do país, com a Família do Norte (FDN), facção com maior número de presos dentro do Compaj e ligada ao Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, rival do PCC. Outra justificativa que também não é novidade. Mas quem é responsável pelo aumento de poder das facções?

Segundo o padre Valdir João Silveira, coordenador da Pastoral Carcerária, o próprio Estado. “Quem criou a facção foi o chamado ‘Estado organizado’. Ela é fruto do Estado, que quer sempre manter uma população pobre, desinformada e analfabeta”, diz ele. “Quanto mais a pessoa presa é desrespeitada em seus direitos básicos como assistência jurídica, saúde, produtos de higiene, quanto mais se amontoam presos nas celas do Brasil, mais as facções se fortalecem. Elas assumem esse papel de cuidar daqueles para quem o Estado virou as costas e agora só sabe torturar e punir”.

‘Pode explodir em qualquer lugar do país’

Em 2012, a Pastoral Carcerária realizou uma viagem de 40 dias fiscalizando as casas prisionais do Amazonas. Padre Valdir conta que este foi o maior período de tempo que trabalhou em um mesmo Estado, devido a situação precária que já era denunciada ali. No relatório divulgado pela Pastoral, era apontado que o Estado tinha um excedente de 3.129 internos e que dos 6.621 apenados, 3.429 eram presos provisórios. O documento também denunciava a alimentação insuficiente, falta de serviços como assistência jurídica em todas as unidades e “tortura como prática recorrente nas carceragens”.

“Em 2012, nós já falávamos do risco de isso acontecer no Estado. Às vezes, eu me surpreendo como [os presos] são tão passivos diante da situação de violência que acontece dentro dos presídios. O Estado é muito violento com a pessoa, em todos os sentidos. Confinar em um espaço isolado, sem ventilação, no escuro, negar os direitos mínimos de uma alimentação razoável, de um tratamento de saúde, deixar a pessoa morrer no cárcere, afastada da família e da sociedade, além das torturas físicas. A situação que explode lá, pode explodir em qualquer lugar do país”, afirma padre Valdir.

A questão do Compaj tem ainda um outro elemento a ser considerado: há pelo menos 10 anos, o complexo é administrado por uma parceria público-privada. O coordenador da Pastoral diz que as chamadas PPPs – que já somam 40 unidades, em nove estados – têm sido motivo de rebeliões em todo o país. As casas de Serrinha, na Bahia, e Pedrinhas, no Maranhão, são alguns dos exemplos. “[Os presos] reclamavam do espaço, de tudo que se reclama em um presídio estatal. De alimentação, do jurídico amontoado, como nos outros presídios”, conta o padre.

O relatório de 2012 já mostrava preocupação com a expansão da terceirização da administração prisional em Manaus. Em um trecho assinado pelo padre Valdir é apontado que todas as unidades do Estado eram administradas pela Empresa Auxílio Agenciamento Financeiro e Serviços Ltda., que passou a atuar no Amazonas em 2004 com o nome de Companhia Nacional de Administração Prisional (Conap). “Curiosamente, tal empresa acumula vitórias em todos os procedimentos licitatórios, “fenômeno” explicado pelo baixo valor oferecido para a execução dos serviços que lhes são atribuídos contratualmente. Seus lucros, no entanto, advém da execução incompleta do contrato, com a violação de diversas cláusulas contratuais. A situação é tão grave que nas últimas licitações já não têm aparecido concorrente”, segue o texto.

Uma notícia de dezembro de 2013, publicada pelo portal D24am, baseada em valores divulgados no Portal da Transparência do Amazonas, mostrava que em oito anos, o Estado gastou cerca de R$ 337 milhões com a empresa Companhia Nacional de Administração Prisional (Conap). Segundo a reportagem, o valor seria suficiente para construir 28 presídios, com capacidade para 570 detentos cada, iguais aos anunciados no mesmo ano pela Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos.

Desde 2014, o Compaj de Manaus estava sob administração da Umanizzare Gestão Prisional e Serviços Ltda, responsável por nove casas prisionais no Norte do país, segundo a Pastoral. Com o complexo de Manaus a empresa tem um contrato de 27 anos, que até julho de 2015 tinha custado R$ 201.204.805,62. Em seu site, a empresa falava em “empregar diversas práticas e ações já desenvolvidas em outras unidades prisionais geridas por ela e que amenizam a condição de cárcere do detento”. O complexo terminou o ano de 2016 com 170% de presos além de sua capacidade.


Para agente, possibilidade de que situação se repita no RS é ‘latente’

Na semana antes do Natal, enquanto a Assembleia Legislativa votava o pacote de medidas de austeridade do governo José Ivo Sartori (PMDB), o Rio Grande do Sul também viveu o prenúncio de eclosão da crise do sistema prisional. Em 24 horas, nove casas prisionais do Estado registraram início ou processo de rebeliões. Em Getúlio Vargas, na região noroeste, quatro presos foram mortos.

As rebeliões tiveram início logo após uma greve deflagrada pelo sindicato dos agentes penitenciários do Estado, em protesto ao projeto de lei complementar – PLC 245 – que seria colocado em votação com o pacote, prevendo fim dos plantões de 24 horas para servidores da Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe). O governo do Estado se negou a reconhecer a greve e a Justiça determinou que os servidores voltassem ao trabalho, sob pena de multa.

Para Alexandre Bobadra, agente penitenciário, membro da diretoria da Amapergs (Sindicato dos Servidores Penitenciários), há “uma possibilidade latente” de se repetir no Rio Grande do Sul o que aconteceu no Amazonas. “Infelizmente, os números do Rio Grande do Sul são alarmantes. Nós temos um déficit de 10 mil vagas para presos. Temos 25 mil vagas e 35 mil presos. Temos um déficit de 3 mil servidores e nossas promoções estão atrasadas desde 2014”, afirma ele.

Segundo Bobadra, a situação dos servidores penitenciários no Estado é precária. Além das promoções atrasadas, o concurso que foi anunciado pela Secretaria de Segurança Pública há seis meses ainda não recebeu nem edital. O agente, que também é diretor da Federação Nacional dos Servidores Penitenciários, disse ainda que a situação de Manaus colocou servidores de todo o país em alerta. “Pode servir de motivação aos outros presos. Eles já não têm medo de nada, sabem que temos poucos servidores e que os governos não investem. Por isso, a possibilidade de acontecer no Rio Grande do Sul é muito grande. Nós estamos trabalhando com a corda esticada, porque as dificuldades são muito grandes”, afirma.

Já o procurador de justiça Gilmar Bortolotto, que tem a experiência de 19 anos trabalhando na fiscalização de presídios de Porto Alegre e região metropolitana, não acredita na hipótese. “Na minha avaliação, o cenário do Estado é diferente. Não é parecido com o que temos aqui. Pelo que soube pela imprensa, a rebelião lá foi programada. Aqui, temos acompanhamento constante das autoridades”, afirma.

Bortolotto também disse que a “guerra de facções” que estaria ocorrendo em Porto Alegre – e motivando a onda de esquartejamentos em 2016 – está focada no domínio de territórios pelo tráfico, fora dos presídios. Porém, ele não afasta a possibilidade de rebeliões pelas condições de superlotação que se acentuam no Estado. Só no ano passado, o Estado chegou a registrar média de 500 presos por mês.

A Secretaria de Segurança Pública do RS também cita a disputa por territórios entre as facções como “inerente à atividade criminosa” e afirma que “mesmo a realidade do Amazonas sendo extremamente diferente da gaúcha no que tange à administração prisional, há intensa troca de informação a nível nacional”. A SSP também afirma que “trabalha em constante estado de alerta”, com “equipes a postos 24 horas por dia”.


Na terça-feira (03), a Penitenciária Modulada de Charqueadas (PASC) registrou uma rebelião com um preso morto e três feridos, um deles um soldado da Brigada Militar que trabalhava como agente na casa. A rebelião teria iniciado com uma disputa entre facções, quando uma delas tentou invadir a galeria de outra. A Secretaria de Segurança disse que os fatos ainda serão apurados.


Com capacidade para 2.400 presos e encaminhado para desativação, o Presídio Central, em Porto Alegre, tem perto de 5 mil apenados | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

IHU Unisinos


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