quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Prisões : O não-debate das eleições 2014

Ricardo Alvarez

Conectas – Conectas apresenta 10 medidas para o sistema prisional, tema negligenciado por candidatos

Há um tema que os programas e os debates eleitorais não mostram de maneira adequada.

Um lugar que nenhum candidato visita. Cerca de 550 mil brasileiros que não aparecem nas pesquisas de opinião. Um pedaço substantivo da realidade brasileira que, apesar de crescer exponencialmente, ano a ano, recebe poucas linhas nos programas de governo. É o sistema prisional que, apesar de concentrar problemas e violações, ainda é abordado de forma simplista, seja na corrida aos cargos do Executivo, seja na disputa pelas vagas do Legislativo.

“Esse tema é visível apenas quando serve de base para a defesa de propostas supostamente ‘duras contra o crime’, que não surtem efeito, não levam em conta a complexidade do cenário e não reconhecem o fracasso de décadas de encarceramento”, afirma Lucia Nader, Diretora Executiva da Conectas. “Pensar o sistema prisional é pensar o sistema de Justiça e em todos os mecanismos que reproduzem a exclusão e a violência. Ignorá-lo ou tratá-lo de maneira irresponsável, como os candidatos vêm fazendo, é jogar para escanteio um dos mais graves e complexos desafios da realidade brasileira, com repercussões nos três poderes e em todos os níveis da federação”, completa Rafael Custódio, coordenador de Justiça da organização.


A importância do tema ultrapassa o debate nacional. Na semana passada, por exemplo, o Brasil teve de responder no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, às denúncias de relatório produzido pelo Grupo de Trabalho sobre prisão arbitrária. Segundo os especialistas, o País utiliza a prisão como regra, e não exceção – o que gera impactos desastrosos em todo o sistema, entre eles a superlotação e o alto índice de presos sem condenação definitiva.


Além dos poderes executivos estaduais e federal, o tema tem incidência direta no trabalho legislativo. Estão no Congresso propostas que podem desmontar as políticas de encarceramento em massa denunciadas pelas Nações Unidas ou, ao contrário, multiplicar o seu alcance e seu impacto negativo na sociedade. “É urgente que esses temas e propostas voltem a ocupar o debate político e se reverta uma estratégia que há muito se provou falida”, diz Custódio.


Diante desse quadro, Conectas apresenta aos principais candidatos à presidência e ao governo de São Paulo 10 medidas urgentes para o sistema prisional – uma lista de compromissos imediatos que atualiza e contextualiza propostas pelas quais a Conectas atua cotidianamente.


Crise no complexo penitenciário de Pedrinhas, no Maranhão, é exemplo claro da falência do sistema

O que acontece hoje nas prisões brasileiras

Ao contrário do que prega o senso comum, o Brasil prende muito e mal. Em dezembro de 2012, nossa população carcerária era de 548 mil pessoas – a quarta maior do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia – segundo dados oficiais do Infopen (Ministério da Justiça). A diferença com relação a esses países é que, contrariando a tendência de queda, a taxa de encarceramento do Brasil, que calcula o número de presos por cada 100 mil habitantes, apenas cresce. Nesse quesito, já ocupamos a terceira posição entre os países mais populosos.

A insustentabilidade dessa política de encarceramento em massa, operada por uma estrutura policial herdada da ditadura militar, é agravada por pelo menos dois grandes fatores: o déficit de vagas, que já supera 230 mil, e a taxa de presos provisórios, que hoje somam 41,8% de toda a população carcerária brasileira. Em geral, são pessoas com restrito acesso à justiça que respondem a crimes sem violência e poderiam aguardar julgamento fora da prisão – o que, de uma só vez, melhoraria o acesso à defesa e desobstruiria o sistema.


Nesse cálculo, a atual Lei de Drogas (de 2006) opera como um multiplicador. Desde o início de sua aplicação, o número de pessoas presas com base na nova norma cresceu 320%. Hoje, 42% das mulheres e 24% dos homens presos respondem a crimes relacionados às drogas. Antes de sua aprovação, esses índices eram, respectivamente, de 24,7% e 10,3%.


Ao contrário do que possa parecer, esse aumento não demonstra a eficiência da lei, mas, ao contrário, o aprofundamento da penalização de jovens negros e pobres das periferias. “Grande parte do contingente que passou a ocupar os presídios depois de 2006, por conta da nova norma, não tinha antecedentes e foi detido com pequenas quantidades de droga.”, explica Custódio.


Para Conectas, redução do encarceramento depende de reforma das polícias e alterações na Lei de Drogas

Esse aumento substancial na quantidade de pessoas atrás das grades não foi acompanhado por uma melhora nos canais de acesso à Justiça. Segundo levantamento de 2013 da Anadep (Associação Nacional de Defensores Públicos) e do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), faltam defensores públicos em 72% das comarcas do País. O desequilíbrio entre os diferentes atores do sistema de justiça também chama atenção: o Brasil conta hoje com 11,8 mil juízes, 9,9 mil promotores e apenas 5 mil defensores – um balanço que coloca em risco o direito de defesa. Só no Fórum da Barra Funda, em São Paulo, cada defensor é responsável por 2,5 mil processos criminais.

Esse cenário é agravado pela falta de um instrumento que permita contato entre o detido e juiz logo após a prisão – o que, ao mesmo tempo, inibiria maus-tratos e tortura e ampliaria a chance da pessoa presa de responder o processo em liberdade. A chamada audiência de custódia já está prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual o País é signatário, mas sua criação ainda depende da aprovação de Projeto de Lei do Senado (554/2011).


A falta de controle do judiciário sobre o processo de detenção e encarceramento é uma das evidências da caixa-preta que impede o escrutínio público do sistema. Isso acontece porque, apesar de concentrarem violações, os presídios ainda são lugares quase inacessíveis para a sociedade civil. Hoje, mesmo órgãos como o Conselho Nacional de Justiça enfrentam dificuldades na hora de entrar – problema que pode ser atribuído, sobretudo, ao controle político dos diretores das unidades pelas secretarias de administração penitenciária.


A sanção de um projeto de lei criando o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura em agosto de 2013 abriu um importante caminho para o fim dessa blindagem. O novo órgão, que atende a compromisso firmado pelo Brasil na ONU em 2007, será composto por 11 peritos com acesso irrestrito a todos os locais de privação de liberdade no País. Importante ressaltar, no entanto, que sua efetividade depende da multiplicação do modelo nos estados. Hoje, apenas o Rio de Janeiro possui um Mecanismo de Prevenção à Tortura em Funcionamento.


Espera-se que a mesma independência seja adotada pelos órgãos periciais, hoje vinculados às secretarias de segurança pública – uma situação clara de conflito de interesses que pode gerar uma atuação corporativista dos peritos, especialmente em casos de maus tratos. Dotá-los de autonomia não só daria mais transparência ao trabalho das polícias, como garantiria o cumprimento do Protocolo de Istambul, ratificado pelo Brasil, que senta as bases para a identificação e a investigação de crimes de tortura.


Sem esses bloqueios será possível diagnosticar com mais precisão as principais mazelas do sistema prisional. E as informações disponíveis hoje mostram que o quadro é amplo e profundo, com um leque amplo de pautas. Uma das mais graves é a atenção à saúde nas unidades. Segundo dados do Ministério da Justiça, em dezembro de 2012 havia apenas um clínico geral para cada 1,5 mil presos.


A falta de estrutura afeta de maneira especialmente grave a mulher encarcerada – muitas vezes desrespeitada, inclusive, no direito de exercer a maternidade adequadamente. Apenas 15 médicos ginecologistas atendem as 31 mil mulheres presas de todo o País. E há inúmeros casos de bebês que são retirados de suas mães e enviados para abrigos sem que a genitora tenha ciência de todo esse processo.

A mesma fotografia desoladora é encontrada no acesso à educação, uma das principais ferramentas contra a reincidência (hoje ao redor de 60%, segundo a Unicef). Em São Paulo, Estado que abriga 35% dos presos do País, apenas 5,7% frequentam as aulas. A falta de oferta contrasta com a demanda potencial: 56% dos internos não completaram sequer o ensino fundamental. No Brasil, o índice de engajamento de presos em atividades educacionais é de apenas 8,6%.


O quadro no acesso ao trabalho é similar. Hoje, apenas 20,4% dos presos brasileiros realizam algum tipo de trabalho interno ou externo. E o afastamento do mercado continua fora das prisões. As política públicas para a reinserção do egresso são limitadas e incapazes de suplantar os estigmas que envolvem o encarceramento. Muitos deles, por sua condição financeira, também não conseguem pagar as multas estipuladas pela Justiça e ficam impedidos de regularizar sua documentação – o que dificulta o processo de busca por emprego.


10 medidas urgentes para o sistema prisional


Para confrontar esse cenário, há pelo menos 10 medidas que podem ser adotadas de maneira imediata.


1. Redução drástica dos índices de encarceramento


– Substituição de penas de prisão de até oito anos por medidas alternativas (hoje previstas somente para penas de até quatro anos), o que representaria redução imediata de cerca de 25% da população carcerária brasileira, e nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça.


- Reformas profundas na política de segurança pública para que a atividade de inteligência policial seja priorizada e focada nos crimes mais graves, e no modelo de polícias existente, para que sejam todas desmilitarizadas.


2. Controle social do sistema carcerário


- Implementação do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, conforme previsto em protocolo firmado pelo Brasil na ONU, e criação de mecanismos estaduais independentes e com integrantes selecionados por meio de consulta pública, nos moldes dos tratados internacionais ratificados pelo País.


-Criação de lei federal que garanta e fomente a inspeção das unidades prisionais por entidades de proteção dos direitos humanos.


– Fortalecimento da atuação dos Conselhos da Comunidade – órgãos da execução penal compostos apenas por representantes da sociedade civil – para que possam exercer seu papel de fiscalizadores das condições do cárcere.


– Criação e fortalecimento das ouvidorias do sistema penitenciário, que devem ser externas e autônomas.


– Fim imediato das revistas vexatórias de familiares nos presídios masculinos e femininos.


3. Fim do uso abusivo da prisão provisória e criação da ‘audiência de custódia’


- Fomento e cobrança do Poder Judiciário e dos ministérios públicos na aplicação efetiva da Lei das Medidas Cautelares (12.403/2011), que prevê alternativas à prisão provisória.


– Incentivo às ações do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) no monitoramento do abuso na aplicação da prisão provisória.


– Aprovação do Projeto de Lei do Senado 554/2011 que cria a audiência de custodia, impondo prado de 24 horas para que o preso em flagrante seja apresentado ao juiz, na presença de seu defensor, para a análise da necessidade de prisão. Essa medida também serviria na prevenção de eventuais maus tratos e é prevista no Pacto de San Jose da Costa Rica, ratificado pelo Brasil.


4. Acesso à Justiça


– Fortalecimento e autonomia financeira às defensorias públicas estaduais e da União.


- Ampliação do número de defensores públicos e do quadro de apoio (assistentes sociais, psicólogos, sociólogos) para atuarem prioritariamente em estabelecimentos prisionais e delegacias de polícia.


– Instalação de sistema eletrônico que permita o acompanhamento dos processos pelos próprios detentos nas unidades prisionais.


5. Redução do impacto da Lei de Drogas no sistema prisional


– Construção de nova política sobre drogas, alterando a legislação para que o uso seja descriminalizado.


- Aplicação de penas alternativas para pequenos traficantes (dependentes financeiros ou químicos que comercializam drogas por sua vulnerabilidade social).


6. Tratamento digno às mulheres encarceradas


– Garantia do direito à maternidade e ao convívio familiar. Ampliação maciça do número de pediatras que realizam acompanhamento de saúde dos recém-nascidos que ficam na companhia da mãe presa.


– Assistência material adequada, com distribuição de itens de higiene.


7. Efetivação do direito à educação e ao trabalho


– Ampliação maciça da oferta de educação e trabalho como instrumentos de reintegração social.


8. Políticas públicas para egressos das prisões


– Implantação de medidas de auxílio a egressos em sua reentrada no mercado de trabalho, além da criação de redes de atendimento psicossocial a ele e a seus familiares.


- Criação de cotas para egressos e presos em regime semi-aberto e aberto em contratos celebrados pela administração pública para a realização de obras e serviços.


– Fim da cobrança de multa após o cumprimento da pena de prisão para que o egresso não tenha dificuldades para regularizar seus documentos.


9. Efetivação do direito à saúde


– Transferir ao SUS a gestão da saúde do sistema prisional e prestar assistência material aos presos em quantidade e qualidade suficientes.


10. Institutos médicos legais independentes das secretarias de segurança pública


– Desvinculação dos institutos médicos legais e da própria perícia criminal dos órgãos de polícia repressiva, em observância ao Protocolo de Istambul, ratificado pelo Brasil.


Rede Justiça Criminal


Como membro da Rede Justiça Criminal, que reúne nove entidades de direitos humanos, Conectas também assinou agenda de propostas para o fortalecimento das alternativas penais no Brasil. O documento, que vem sendo discutido com todos os candidatos à Presidência, atesta os problemas das políticas de encarceramento em massa e aponta 13 caminhos para a promoção de “ uma política sólida e permanente de alternativas penais”.


Texto postado originalmente em:
http://www.conectas.org/pt/acoes/justica/noticia/25403-prisoes-o-nao-debate-das-eleicoes-2014


Controversia


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