quarta-feira, 15 de novembro de 2017

A democracia e a identidade da esquerda.

 
Artigo de Nadia Urbinati

“Uma esquerda pragmática é cheia de valores, não tonitruante e não populista, e sabe bem que, sem uma organização partidária, a sua política não vai longe, mesmo que alguns políticos possam abrir caminho.”

Se nos perguntássemos se prezamos mais pela democracia ou pela esquerda, deveríamos responder pela democracia. Por essa razão, prezamos pela esquerda. É o casamento entre essas duas irmãs que deve estar no coração daqueles que sentem tremer a terra debaixo dos pés da esquerda, na Itália e em toda a parte do Ocidente.

A reconstrução da democracia na Europa foi obra do reformismo cristão e social-democrático, não das direitas. Nós nos iludiríamos se pensássemos que o fascismo é um anacronismo – talvez o seja nas formas arcaicas da Itália agrícola, mas não nas ideias e nas aspirações, que continuam sendo antidemocráticas, antiuniversalistas e facciosas –, convencidos de que o Estado deve estar a serviço de uma parte, a identitária e o nacionalista. Essa foi e ainda é a ordem da hierarquia. A democracia constitucional é o oposto. E precisa de uma esquerda reformista.

Desde 1945, esse é o paradigma na Itália e na Europa. Que funcionou não só por uma questão de maioria numérica. A esquerda tinha uma base social claramente definida – uma classe trabalhadora com os seus possíveis aliados sociais – da qual decorria uma visão não ambígua das políticas a serem feitas. Essa clareza de horizonte substancialmente não mudou. Porque é verdade que as formas do trabalho mudaram, mas a composição do poder social, contudo, segue a condição do trabalho (e da sua ausência ou precariedade); segue a condição popular, não a da riqueza.

A igualdade e a justiça social sempre foram as pernas e as antenas da esquerda. Não são princípios abstratos – são princípios regulatórios que ajudam a ler os eventos e os fatos, a identificar o que se pode querer agora, a fim de poder preparar outras decisões amanhã.

Não há dois mundos: uma sociedade ideal que está acima das nossas cabeças e dos políticos que ciscam como podem, com a suposição de que as coisas do mundo são diferentes. A esquerda democrática é pragmática. E o é porque adota aqueles dois princípios como suas diretrizes e raciocina “como se” a sociedade que quer, deve ser justa e solidária. Sem aquele “como se”, sem os princípios que guiam as escolhas, a esquerda é um partido que quer votos e vagueia por aqui ou acolá como uma vespa para pegá-los, sem uma fisionomia reconhecível. E sistematicamente perde.

O “como se”, além disso, não é tão complicado de se entender. Se queremos que a nossa sociedade seja inclusiva e que os cidadãos tenham uma dignidade igual, devemos querer uma escola pública que seja tal; e devemos querer que seja boa para todos os meninos e as meninas, aberta e inclusiva, por sua vez. A escola pública é fundamental para a democracia, que não é governo dos sábios, mas deve tornar os seus cidadãos alfabetizados e aculturados, pelo seu bem e o de todos.

Não é uma opção, e as receitas não são infinitas, nem todas são compatíveis. O “como se” não é complicado de se entender nem mesmo quando se quer que a República seja capaz de estar sempre do lado dos cidadãos quando precisam de cuidados. Não é aceitável que um a esquerda se renda ao deus dinheiro e privatize progressivamente a saúde – com danos irreparáveis, também em termos de custo. E de qualidade, porque basta ir aos Estados Unidos para compreender o desastre da saúde privada.

Uma esquerda pragmática é cheia de valores, não tonitruante e não populista, e sabe bem que, sem uma organização partidária, a sua política não vai longe, mesmo que alguns políticos possam abrir caminho.

A personalização da política pode fazer bem à direita, mas faz muito mal à esquerda (e, talvez, um dos problemas do Partido Democrático italiano é justamente o seu estatuto), que deve conseguir conciliar a participação com a delegação, a liderança com o coletivo. Por essa razão, o partido deve ser uma escola de vida pública e de formação política.

Sem isso, há muita audiência televisiva e pouca construção de consenso. E o “como se” não é entendido. A audiência premia quem sabe gritar contra e quem cria polêmica; um esporte muito fácil, que não requer estudo, nem prova alguma. Essas personalidades geram mais poeira do que política. Estão longe da realidade, incapazes de reflexão pragmática. A audiência basta a si mesma e a eles.

Mas a esquerda que forma opinião deve tomar um caminho diferente e reconstruir a sua cultura política através do encontro das pessoas, em lugares materiais e verdadeiros.

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A opinião é da cientista política italiana Nadia Urbinati, professora da Columbia University, em Nova York, e ex-professora da Unicamp, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 11-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.


Unisinos




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