sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Entender as opressões para combatê-las

Não se trata mais apenas expressar os interesses de uma classe operária entendida como sujeito coletivo unitário, mas de construir a vontade política e a unidade na ação de uma multiplicidade de grupos dominados. Para isso, entender com profundidade como se cruzam as diversas estruturas de opressão é fundamental.

Luis Felipe Miguel.

É lugar-comum dizer que a tradição marxista, ao definir que a dominação de classe é o fundamento último da ordem social, não leva em conta outras formas de assimetria e de opressão. Para esta tradição, o racismo teria nascido como um estratagema para minar a solidariedade entre os dominados; mesmo a opressão sobre as mulheres seria um subproduto da apropriação privada da riqueza, a crer no relato de Engels, apresentado no clássico A origem da família, da propriedade privada e do Estado. O corolário dessa percepção é que só a luta de classes importa; todo o resto seria desviacionismo. Quando o socialismo chegasse, todas as formas de dominação desapareceriam naturalmente.




Essa narrativa está – felizmente – desacreditada, mesmo (em geral) no âmbito do próprio marxismo. Já que também não prosperaram as leituras feministas, frequentes nos anos 1970, de que racismo e dominação de classe seriam apenas extensões do sexismo, hoje é amplamente reconhecido que as diferentes opressões sociais são irredutíveis umas às outras, ainda que operem de forma cruzada para produzir a realidade que nos cerca e nos constitui. Mas o mero reconhecimento deste fato é insuficiente, assim como é insuficiente o discurso, frequente em círculos de esquerda, de que as opressões são todas “igualmente centrais” e que há “interseccionalidade” entre elas.



Se nos contentamos com a ideia fácil de que não devemos “hierarquizar” as opressões, nos privamos da possibilidade de compreender com maior profundidade o funcionamento do mundo social. A questão não é estabelecer hierarquias, mas entender as diferentes maneiras pelas quais elas incidem em diferentes espaços sociais com efeitos diferentes em abrangência e profundidade.



Por qual mágica seria possível garantir que todas as formas de dominação têm exatamente o mesmo impacto e o mesmo peso na produção da realidade? É razoável pensar, por exemplo, que o capitalismo opera como um sistema, que incide sobre todas as relações sociais curvando-as à sua lógica, ao passo que o patriarcado demonstra sobretudo uma maleabilidade que lhe permite prosperar nas mais diversas formações sociais e momentos históricos, mesmo quando o que antes parecia ser sua base (a exclusão das mulheres da esfera pública ou a moral sexual repressiva) é abalado. Isso não significa estabelecer que um é “mais fundamental” do que outro, mas percebê-los como agindo por mecanismos que são diversos e, portanto, não se equivalem. E também pode ser que não seja assim – exatamente por isso é necessário avançar na investigação. Estabelecer que capitalismo, patriarcado, racismo ou homofobia se equiparam como formas de dominação por um parti pris arbitrário é teoricamente improdutivo e, quase com certeza, empiricamente incorreto.



Por outro lado, também é razoável sugerir que há eixos que são mais estruturantes do mundo social na sua totalidade – o que não significa que as outras formas de opressão sejam secundárias ou irrelevantes. O capitalismo pode explicar uma gama maior de aspectos da sociedade atual do que a homofobia, mas, mesmo que isso seja verdade, na vida de um trabalhador gay, ser gay representa provavelmente enfrentar uma carga muito maior de violência e discriminação do que ser trabalhador. Não nasce daí uma hierarquia que estabelece uma luta como prioritária ou anterior à outra, mas a possibilidade de combiná-las de uma maneira mais competente.



Compreender as diferenças na forma de funcionamento e no impacto social das diversas relações de dominação é essencial para que sejamos capazes de sair do mero reconhecimento ritual da “interseccionalidade” e possamos tanto compreender seu funcionamento cruzado quanto produzir estratégias que articulem as demandas variadas dos múltiplos grupos oprimidos. No fim das contas, é isso que está em jogo. No livro Hegemonia e estratégia socialista, Ernesto Laclau e Chantal Mouffe observam que a crise da esquerda, no momento, ainda não superado hoje, da crise do modelo bolchevique, é uma crise da “ilusão da possibilidade de uma vontade coletiva perfeitamente una e homogênea que tornaria inútil o momento da política”.1 Sem necessariamente aderir ao pacote completo de ideias que Laclau e Mouffe expõem no livro, é necessário reconhecer que este diagnóstico é irretocável. Não se trata mais apenas expressar os interesses de uma classe operária entendida como sujeito coletivo unitário, mas de construir a vontade política e a unidade na ação de uma multiplicidade de grupos dominados. Para isso, entender com profundidade como se cruzam as diversas estruturas de opressão é fundamental.



O feminismo socialista dos anos 1960 e 1970 produziu algumas reflexões importantes para entender a relação entre patriarcado e capitalismo, que no entanto precisariam receber maior desenvolvimento e, claro, atualização, já que as últimas décadas presenciaram mudanças importante nos padrões de dominação seja de classe, seja de gênero.2 A introdução do racismo estrutural e da heteronormatividade compulsória, entre outros eixos possíveis, torna a tarefa de deciframento da dominação social ainda mais desafiadora. Mas, se não a enfrentarmos, permaneceremos ou fadados à hierarquização arbitrária das agendas ou presos nas armadilhas da política identitária, na qual a luta muitas vezes não é contra os sistemas de reprodução da dominação, mas uma competição pela afirmação da própria opressão sofrida.



Notas



1 Ernesto Laclau. Chantal Mouffe. Hegemonía y estrategia socialista: hacia una radicalización de la democracia (Madrid, Siglo Veintiuno, 1987), p. 2. O livro foi publicado originalmente em 1985.

2 Discuto algumas dessas teorias no artigo “Voltando à discussão sobre capitalismo e patriarcado”, publicado na Revista Estudos Feministas, vol. 25. n. 3, 2017, p. 1219-1237.



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Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). É um dos autores do livro de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. Seu próximo livro, Dominação e resistência, será publicado pela Boitempo em 2018. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às sextas.


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