sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Daniel Aarão Reis: O desvio autoritário de uma ideia

 

Durante o século XIX, socialismo e democracia eram conceitos intercambiáveis. O socialismo era visto como um aprofundamento da democracia e só seria possível quando esta fosse aperfeiçoada. Eram ideias poderosas, que se sedimentaram principalmente após as revoluções francesas de 1848 e de 1871 (a Comuna de Paris), quando vários partidos socialistas se formaram pelo mundo. Em 1889, fundou-se a II Internacional Socialista, rapidamente dominada por aqueles que se intitulavam herdeiros de Karl Marx. Para todos eles, os valores democráticos eram referências comuns. Lutava-se pelo sufrágio universal, direto e secreto. Pela liberdade de organização sindical e partidária, pela liberdade de imprensa e pelos direitos sociais. Mesmo nos países da Europa Oriental, onde ainda eram ignoradas as liberdades democráticas, os partidos socialistas eram identificados com a democracia e nada é mais eloquente a este respeito do que o fato de que eles, na Rússia, se autodenominassem e fossem conhecidos como “a democracia”.



No mundo atual, contudo, esses dois conceitos parecem estar separados como água e óleo. Na América Latina, no começo dos anos 1980, o Partido dos Trabalhadores (PT), por meio de várias de suas tendências, cultivou a ambição de construir um caminho socialista e democrático. Mais tarde, porém, derivas pragmáticas e “gestionárias”, ocupadas quase que exclusivamente em “administrar os negócios”, e garantir a “governabilidade”, fizeram com que o PT perdesse esse rumo. Casos em que socialismo e democracia aparecem juntos são raros, mas existem. No Uruguai, propostas de construção de um socialismo democrático estão vivas no interior da Frente Ampla, destacando-se aí a figura de José Mujica. Na Europa, têm aparecido igualmente tendências socialistas democráticas, ecológicas e favoráveis à auto-organização das gentes, com destaque para Espanha, França, Islândia, Itália e Grécia. Todos esses movimentos, porém, têm dificuldade em se apresentar como democráticos.



A principal razão para essa crise de confiança no socialismo originou-se nos desdobramentos da Revolução Russa. O comunismo russo dissociou democracia e socialismo, principalmente após a revolução que ocorreu durante as Guerras Civis, entre 1918 e 1921. Os anarquistas passaram a ver o socialismo soviético como uma espécie de capitalismo de Estado. Para os social-democratas, tratava-se de um “socialismo de quartel”. Um pouco mais tarde, Trotski lançou a ideia de um “socialismo degenerado”. Todos esses críticos não perceberam que estava surgindo um socialismo de novo tipo: autoritário, centralista, estatista. Foi ele que hegemonizaria a história do socialismo no século XX.



Convém recordar, antes de mais nada, que, na Rússia, na virada do século XIX para o século XX, inexistiam tradições democráticas. Uma autocracia totalizante imaginava o Imperador como gosudar, ou seja, o “amo” de um “domínio”, estabelecendo-se entre ele e seus vassalos uma dominação absoluta, sem mediações institucionais. O czar (do latim, César) regia seus territórios e gentes com mão de ferro, só prestando contas a Deus. Os governos eram de sua livre nomeação. A burocracia civil, hierárquica e vertical, “seus olhos e ouvidos”. A Igreja Ortodoxa, decisiva na formação de um povo extremamente religioso, também era controlada pelo autocrata. Na defesa do regime, uma das melhores polícias políticas do mundo destacava-se pela eficiência, enquanto os cossacos, tropas especiais, reprimiam com brutalidade os movimentos sociais. Num outro plano, as forças armadas formavam um dispositivo temível interna e externamente.



Entre 1905 e 1921, a Rússia conheceu um ciclo de cinco revoluções. Em 1905, movimentos sociais, defendendo reivindicações democráticas, agitaram a sociedade de janeiro a dezembro, quando foram esmagados. Durante o ano de 1905, a revolução na Rússia surpreendeu a todos. Ela foi derrotada, mas fixou experiências que permaneceram nas memórias. Quatro grandes movimentos sociais se destacaram: operários, soldados e marinheiros, camponeses e nações não-russas. A eles se associaram as classes médias e mesmo setores das elites sociais. Em comum: a luta contra a autocracia e por uma assembleia constituinte que democratizasse o poder no sentido de uma monarquia constitucional ou de uma república democrática, como os mais ousados já propunham.



Em 1917, no contexto da I Guerra, de proporções totais e de caráter industrial, a Rússia, aliada à Inglaterra e à França, suportou mal a pressão dos exércitos alemães. Em consequência, exasperaram-se as contradições políticas e sociais. O resultado foi que, em fevereiro daquele ano, em Petrogrado, capital do Império, cinco dias de grandes manifestações, sucessivas e surpreendentes, de operários e soldados, derrubaram a autocracia. Emergiu, então, uma sociedade livre de repressão e de quaisquer tipos de constrangimento. Como disse um observador: “Todos queriam mandar e ninguém pensava em obedecer.”



Encimando a máquina administrativa tradicional, constituiu-se um governo cuja capacidade de comando, porém, sempre foi muito reduzida. Em contraste, e por toda a parte, multiplicaram-se os poderes de fato: conselhos (sovietes) de soldados e operários, comitês agrários, assembleias, milícias armadas, associações de jovens e de mulheres, sindicatos, etc. Eram redes horizontais que só respeitavam diretivas ou ordens que correspondessem a suas vontades e interesses. Ressurgiu a reivindicação comum, formulada em 1905: eleger uma assembleia constituinte, eleita na base no sufrágio universal. Por ela um novo governo seria legitimado e teria autoridade — era o que se esperava — para governar as gentes. Era preciso marcar o quanto antes a data de sua convocação. E acabar com a guerra, cujo peso ninguém aguentava mais. Entretanto, os governos que se sucederam não foram capazes de responder a esses desafios.



Num contexto de imensa cacofonia, desencadearam-se movimentos sociais cada vez mais poderosos, sem freios e autônomos: os operários exigiam melhores condições de vida e de trabalho; os camponeses queriam a terra, toda a terra, sem nenhum tipo de indenização aos proprietários; os soldados e os marinheiros exigiam a paz imediata, a qualquer custo; as nações não-russas, nas brechas, queriam a independência nacional, ameaçando a integridade do país. No turbilhão social, fortaleceu-se, cada vez mais, a proposta de derrubar o governo e entregar “todo o poder” aos sovietes e às organizações populares. Um congresso pan-russo dos sovietes, convocado para 25 de outubro, decidiria esta e muitas outras questões.



Foi nessa situação caótica em que “ninguém obedecia ninguém” que aconteceu uma terceira revolução, a de outubro. Ela teve uma face autoritária notória: o partido bolchevique, que então passara a controlar, entre muitos outros, o Soviete de Petrogrado, organizou uma insurreição na capital e tomou o poder central. As guerras civis que viriam em seguida decidiriam o destino daquele processo histórico. Elas foram, de fato, uma revolução na revolução. Houve uma guerra entre o novo governo revolucionário e as anteriores classes dominantes (vermelhos vs. brancos). Foi a principal polarização, mas não a única. Ocorreram ainda duas outras guerras, a que opôs os bolcheviques e as demais forças socialistas, contrárias ao rumo ditatorial que os bolcheviques imprimiam ao poder revolucionário (vermelhos vs. vermelhos). E a que opôs os russos e os não-russos, pois o direito à secessão, reconhecido na teoria, foi desrespeitado na prática. As guerras civis se estenderam até 1921. Elas arrasaram o país e liquidaram com a autonomia e a democracia que as organizações populares haviam conquistado ao longo de 1917.



Na tentativa de reverter este processo, em março de 1921 ocorreu uma quinta e última revolução, realizada pelos marinheiros da base naval de Kronstadt. Eles queriam um retorno à democracia socialista e às liberdades soviéticas de 1917. Os marinheiros, com muitos ucranianos e lituanos entre eles, foram esmagados a ferro e fogo pelos bolcheviques. Consolidou-se, assim, um regime ditatorial que permaneceu intocado até a desagregação da União Soviética, em 1991.



Dessa forma, o comunismo russo deu início a uma nova vertente do movimento socialista mundial. Criou até mesmo a Internacional Comunista ou III Internacional, que perdurou até 1943. Mesmo após esta data, contudo, as conexões do comunismo russo com o mundo continuaram fortes. Embora a revolução chinesa de 1949 e a cubana, de 1959, tenham ocorrido com pouca ou nenhuma ajuda soviética, os governos que se formaram adotaram, pelo menos nas primeiras fases, os padrões do socialismo soviético: ditadura política, planificação centralizada, estatização radical da economia, mobilização ideológica da sociedade, reformas sociais profundas. Ao lado da Revolução Russa, elas configuraram um padrão, o da revolução catastrófica, que se associa necessariamente a ditaduras políticas. Uma tragédia para a teoria, a proposta — e a esperança —, que associava socialismo e democracia. Em comum, as revoluções em Cuba e na China também ocorreram em sociedades agrárias, como a russa.



De modo geral, e curiosamente, as tendências soviéticas sempre negaram seu caráter ditatorial. Em suas polêmicas com os social-democratas europeus, Lenin argumentaria que a “democracia soviética” era “mil vezes mais democrática” que a melhor democracia europeia. Ele se referia ao processo soviético de 1917, que não mais existia na Rússia revolucionária. Em outras linhas de argumentação, os socialismos autoritários reivindicaram-se como “verdadeiras democracias” por terem sido capazes de alcançar a soberania nacional e de realizar efetivas reformas sociais (nacionalização da terra, serviços públicos gratuitos e de qualidade na educação e saúde), reduzindo drasticamente as desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, buscaram legitimar-se criticando as insuficiências gritantes dos regimes democráticos liberais — corrupção dos processos eleitorais, nível baixo de participação efetiva das gentes nas decisões políticas, permanência de desigualdades sociais, etc.



Em todos esses argumentos há importantes grãos de verdade, o que contribuiu para que esses regimes adquirissem uma certa legitimidade, interna e externa. Por outro lado, na medida em que as classes trabalhadoras europeias e seus partidos foram conquistando importantes reformas sociais e políticas, tenderam a se afastar de uma perspectiva socialista revolucionária. Em consequência, quase todos os partidos social-democratas mudaram seus programas originais, comprometidos com a superação do capitalismo, adotando-se fórmulas afeitas ao capitalismo “regulado”, também chamado de “estado de bem-estar social”.



Assim, a bipolarização entre “comunismo” ditatorial e “social-democracia” gestionária, marcou profundamente a história do socialismo do século XX.



Entretanto, a partir dos grandes movimentos sociais de 1968, a crítica ao paradigma da “revolução catastrófica” se fortaleceu, gerando diversas correntes que, no interior da social-democracia, criticavam suas tendências à “gestão progressista” do capitalismo.



A desagregação da União Soviética, em 1991; as opções da China no sentido de um desenvolvimento capitalista sob controle do Estado, mantida a ditadura política; e a transformação da Revolução Cubana numa ditadura conservadora e familiar geraram situações favoráveis ao repensar de um socialismo democrático, com raízes nos movimentos socialistas do século XIX, cujas experiências mais fortes encontravam-se na Europa e nos Estados Unidos. Este é o desafio que se coloca para uma eventual reinvenção do socialismo no século XXI — voltar a associar socialismo e democracia. Só assim terá condições de prosperar como alternativa.



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Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense/UFF


Gramsci e o Brasil


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