sexta-feira, 24 de março de 2017

A migração dos conservadores para a reforma política dos progressistas

Marcus Ianoni*

Chama a atenção na agenda do Congresso o conteúdo e a base de sustentação da proposta de reforma política em tramitação. Por um lado, as principais forças de alavancagem das alterações são as mesmas lideranças conservadoras que promoveram institucionalmente a deposição da presidenta Dilma Rousseff e que, durante anos, se opuseram à reforma política democrática. Por outro lado, como que por ironia da história, a proposta em debate traz dois componentes defendidos desde os anos 1990 pela esquerda, a começar pelo PT, e outros progressistas, quais sejam, o avanço no sentido do financiamento público das campanhas eleitorais e a alteração da modalidade de lista aberta para a de lista fechada no sistema proporcional que regula a eleição de deputados (federais e estaduais) e vereadores. O que se passa?


Diante da decisão do STF, tomada em 2015, de considerar inconstitucional o financiamento empresarial das campanhas eleitorais e dos partidos políticos, que contrariou conservadores na Suprema Corte, como Gilmar Mendes, e no Congresso, a começar pelo então presidente da Câmara, o hoje famigerado ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ); diante da falta de condições para que os figadais escudeiros do financiamento patronal ressuscitem esse dispositivo legal, mormente a crise de legitimidade do sistema político e o receio do empresariado de continuar abrindo os caixas 1 ou 2 (crime eleitoral) ou 3 (corrupção); e, finalmente, diante da dificuldade que muitos parlamentares antevêem no caminho rumo à sua almejada reeleição em 2018, em função dos sucessivos escândalos políticos, principalmente os associados à Operação Lava Jato (com destaque à segunda lista de Rodrigo Janot), líderes da direita, para salvar a própria pele e a de seus correligionários, estão migrando para defender uma moeda de dupla face, que há muito vem sendo defendida pelos progressistas: a lista fechada e um modelo de financiamento político que, embora não seja exclusivamente público, mas misto, avança no sentido da correção do principal problema existente na regra atual, testada em 2016, baseada na contribuição de pessoas físicas, inclusive a do próprio candidato, que opera no sentido de substituir a anterior plutocracia dos eleitos com os milhões recrutados das pessoas jurídicas para aquela da eleição dos candidatos individualmente ricos, continuando a impedir, assim, que o sistema representativo torne-se menos distorcido pelo poder do dinheiro. Com a lista aberta, fica praticamente inviabilizada tecnicamente a possibilidade de implementação de um dose substantiva de financiamento público, medida cuja aplicação a lista fechada facilita.


Em 2015, no processo de decisão do STF sobre a (in)constitucionalidade do financiamento empresarial, o conservador Gilmar Mendes, hoje também presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) assim se posicionou:“Nenhuma dúvida de que ao chancelar a proibição das doações privadas estaríamos chancelando um projeto de poder. Em outras palavras, restringir acesso ao financiamento privado é uma tentativa de suprimir a concorrência eleitoral e eternizar o governo da situação”. Golpeada politicamente, ao menos parcialmente, a principal força que então encarnava o suposto “projeto de poder”, o PT, os vencedores da disputa do impeachment, como é o caso de Gilmar Mendes, Eunício Oliveira (PMDB-CE) e Rodrigo Maia (DEM-RJ), os dois últimos ora presidindo, respectivamente, o Senado e a Câmara, preocupam-se, se não com a garantia da eternização do governo da situação, ao menos com a sua preservação em um horizonte de curto e médio prazo, até 2022 (para os atuais deputados) ou 2026 (caso dos senadores a serem (re)eleitos em 2018).


Oportunismos à parte, é salutar avançar na autonomia do processo eleitoral em relação ao vil metal, assim como o é investir na redução do grau de individualismo e de fragmentação do sistema partidário fomentados pela quase-jabuticaba que é a lista aberta. A possibilidade dos eleitores passarem a se relacionar com partidos e não mais com um emaranhado de nomes associados a dezenas de legendas desconhecidas será, em caso de aprovação da lista fechada, uma novidade que, potencialmente, pode trazer ganhos para o confuso sistema político brasileiro, no qual há um quadro partidário ainda carente de maior institucionalização.


A novidade ruim é que a lista fechada está sendo proposta agora para tentar garantir que os atuais representantes proporcionais logrem obter novamente presença na nominata de seus respectivos partidos no pleito de 2018. Teme-se a oligarquização dos partidos, como se hoje eles já não fossem oligarquizados. No entanto, em médio prazo, o fortalecimento da disputa interna nas legendas partidárias poderá minimizar problemas desse tipo. Há situações em que o ótimo é inimigo do bom e amigo do ruim ou do péssimo. Se o financiamento plutocrático baseado nas pessoas físicas e a lista aberta permanecerem como regras do jogo, o sistema político tende a manter-se na atual inércia que o levou à crise de legitimidade em que se encontra, embora o insucesso na economia também conte muito para a descrença geral.


* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), ex-pesquisador visitante da Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia.


Jornal do Brasil

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