quinta-feira, 10 de novembro de 2016

A tortura é a norma. A anomalia são as ocupações.

Na democracia, nascida da transição controlada nos anos 80, a tortura é a norma.

Edson Teles.

“Autorizo expressamente que a Polícia Militar utilize meios de restrição à habitabilidade do imóvel, tal como suspenda o corte do fornecimento de água, energia e gás. Da mesma forma, autorizo que restrinja o acesso de terceiros, em especial parentes e conhecidos dos ocupantes, até que a ordem seja cumprida. Autorizo também que impeça a entrada de alimentos. Autorizo, ainda, o uso de instrumentos sonoros contínuos, direcionados ao local da ocupação, para impedir o período de sono. Tais autorizações ficam mantidas independentemente da presença de menores ocupantes no local […]”.

Pasmem! Esta foi a decisão do juiz Alex Costa de Oliveira, no dia 30 de outubro de 2016, como forma de lidar com estudantes que ocupavam sua própria escola. Lotado na Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal, o meritíssimo parece desconhecer as leis que regem boa parte de seu ofício: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o princípio da incompletude institucional destes indivíduos.

Contudo, lendo melhor seu despacho, percebemos que as ações de tortura são autorizadas mesmo com a ciência da situação e das leis. Na ressalva em que ele reconhece a situação especial por se tratar de adolescentes – “independentemente da presença de menores” –, fica claro que há ciência do caráter de exceção do ato. Já ao identificar o espaço do conflito como sendo o “local da ocupação”, explicita-se contra o que se produz a exceção: a luta política de ruptura.

Pode ser surpresa para parte da sociedade. Mas para os movimentos de direitos da criança e do adolescente e para a Defensoria Pública não há novidade. Há, certamente, indignação com a repetição destes estados de exceção. A arbitrariedade e o abuso de poder têm sido constantes nas varas da infância e da adolescência e nas instituições socioeducativas, desde sempre.

Na democracia, nascida da transição controlada nos anos 80, a tortura é a norma.

“Os adolescentes foram levados para o dormitório, colocados de frente para a parede e obrigados a permanecer com a testa encostada na parede. Apoiados nas pontas dos pés e com os braços imobilizados atrás, deveriam se manter equilibrados nesta posição. Quando um deles se desequilibrasse ou saísse da posição, todos apanhavam”. Este é o relato de violações de direitos humanos, obtido por pesquisa do Conselho Regional de Psicologia, em unidades de atendimento ao adolescente em conflito com a lei, comuns e corriqueiras nas estruturas e na história da máquina disciplinar de modelo Febem. Elas se reproduzem abundantemente, com o conhecimento das instituições do Estado e sem uma resposta consistente, muitas vezes com a cumplicidade delas, como no caso do Distrito Federal.

A tortura é acompanhada de ações ilícitas, porém autorizadas – via Estado e certa opinião pública –, por parte de agentes públicos. Não precisamos nos estender em muitos casos, pois há dois exemplos que retratam de modo angustiante a situação.

O primeiro, objetivando a criminalização dos movimentos sociais, foi a invasão da Escola Nacional Florestan Fernandes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Policiais a serviço da gestão Alckmin deram tiros, desrespeitaram e agrediram as pessoas e tentaram, junto com a grande mídia, intimidar as lutas que vêm crescendo no país. Estado de exceção visando o silenciamento dos coletivos e ativismos políticos.

O segundo exemplo da combinação da tortura com atos ilícitos por parte do Estado é o sequestro e assassinato de cinco jovens na periferia de São Paulo, no fim de outubro. Recentes matérias apontam para uma ação da Polícia Militar. Notícia repetida com frequência, as chacinas são os mecanismos de controle e intimidação das possibilidades de revolta entre os mais pobres, não organizados, mas com todos os motivos, saberes e condições para explodirem em lutas sociais.

A norma de governo tem sido, faz tempo e agora com grande escalada de crescimento, a violência e o ilícito. Se houve, por um lado, programas sociais de inclusão e de diminuição dos sofrimentos causados pela miséria com uma maior distribuição de renda, o mesmo Estado também investiu em mecanismos de violação de direitos, jurídicos e estruturais. Ou simplesmente se ausentou de tratar os problemas.

Foi assim que a chacina de cerca de 500 pessoas, em São Paulo, no mês de maio de 2006, não foi esclarecida, mantendo as comunidades sob o terror do Estado e de novas investidas criminosas dos agentes públicos. Movimentos como o das Mães de Maio, composto por familiares das vítimas, demandaram, sem sucesso, a federalização da apuração. Era notório que o governo paulista do PSDB acobertava os policiais envolvidos. Mais ainda: a ação genocida havia sido operada pela corporação, levando suspeitas para sua coordenação por parte da cúpula militar. Outras matanças vieram. É assim que o Estado busca silenciar as periferias e os bairros pobres da cidade.

Na recente perseguição ao MST, uma das ferramentas utilizadas foi a Lei da Organização Criminosa, sancionada em agosto de 2013, em meio aos acontecimentos da revolta de junho. Soma-se a outros instrumentos fascistas, legais e autorizados pelas instituições do Estado e seus governantes, como a Lei Geral da Copa (de 2012), e a capciosa Lei Antiterror (de 2016). Bem como a constante autorização, de todos os governos da democracia, de uso das Forças Armadas no trato dos assuntos de segurança pública, primeiro aos poucos e com maior ênfase nas UPPs, acentuou-se nos períodos dos grandes eventos esportivos e promoveu uma militarização da vida cotidiana.

Houve tentativas de controle da impunidade do Estado policial. Exemplo disto foi a criação do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (de 2013). Com cinquenta por cento e mais um de seus membros formados por representantes da sociedade e o restante de membros do governo federal, tal instituição falhou em implementar ações concretas de contenção da violência do Estado. O maior problema foi a ação corporativa dos representantes do Estado, conforme denunciou a Pastoral Carcerária ao se retirar do Comitê: “o que deveria ser um sistema baseado na absoluta autonomia dos seus elementos, e preponderância da sociedade civil na condução dos trabalhos, eis que o Estado brasileiro era e continua sendo o maior dos torturadores, transformou-se em mais um aparelho burocrático, sob permanente tutela governamental”.

O golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, e este é um aspecto central em nosso argumento, coroou um processo de pequenos estados de exceção, com estrutura de golpes contra a democracia, porém constantes. Especialmente após junho de 2013, o acionamento dos mecanismos e estratégias autoritárias, novos e antigos, se expôs como a norma. O golpe foi mais de aprofundamento e continuidade dos múltiplos golpes anteriores, do que de ruptura.

Entretanto, é de gravidade extrema que, após o golpe contra o governo Dilma, tenha se intensificado extremamente a prática de destruição dos direitos e das possibilidades de resistência. Não é apenas mais um momento da consolidação de um Estado autoritário, mas a tentativa de decepar os processos criativos e de movimentos de transformação, bem como de qualquer garantia legal e institucional de democracia.

São momentos, os que se seguirão, em que as estratégias autoritárias se aproveitarão de um fluxo social e político conservador para caçar, literalmente, nossas mais belas criações políticas da democracia. Refiro-me às ocupações dos espaços públicos, hoje simbolizadas com os estudantes secundaristas e universitários.

Quando um juiz autoriza a tortura contra secundaristas em luta, a exceção indica apenas que é a partir de um mecanismo institucional, funcionando a partir da própria lei, que se produz o ilícito e o arbitrário. Contudo, a tortura e seus acessórios no Estado policial são a norma.

A norma se impõe pela força (e apoiada nas leis) e sua lógica é a da produção do anormal, do patológico, ao qual ela deveria, em tese, agir com rigor para curá-lo, eliminá-lo, ou, ao menos, anulá-lo. No entanto, a proliferação de novos comportamentos, novas relações e vivências políticas, pode ser o prenúncio de potências criativas de outras possibilidades de relacionamentos. As práticas sociais convivem com uma ampla diversidade de formas de vida.

Se a norma procura negativar tudo que não é lhe é próprio – ocupantes, militantes do MST, negros, mulheres, jovens – as anomalias indicam a diversidade e as diferenças sociais. Suas práticas, enquanto criadoras de novos caminhos, são fundamentadas no afrontamento aos riscos e na coragem de ir ao encontro do novo.

Para as lutas que se seguem, parece-nos que se trata de respeitarmos suas novas formas e de apoiarmos plenamente os que estão no protagonismo das ações. Nas centenas de escolas e dezenas de universidades os estudantes configuram, hoje, a maior resistência aos avanços de um Estado policial e de uma normatividade da violência institucional.

Ocupa tudo. Ocupar, lutar e resistir.

***

Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.



Boitempo

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