segunda-feira, 21 de novembro de 2016

A sonegação fiscal destrói o Brasil

Sonegação é corrupção 
Marcos de Aguiar Villas-Bôas 

O rico paga pouco tributo e a PEC congela despesa que beneficia o pobre

A sonegação de tributos tem a proeza de, ao mesmo tempo, destruir a situação fiscal de um país e aumentar muito a desigualdade, levando a problemas econômicos variados.

O número da sonegação normalmente apresentado pela Procuradoria da Fazenda Nacional está entre 400 e 500 bilhões de reais. Recentemente vem se falando em 900 bilhões de reais.


Estudos divulgados no exterior em relação a países em desenvolvimento mencionam outro problema, mas correlacionado: um fluxo anual de 900 bilhões de dólares de capital ilícito para o exterior decorrente de corrupção, propinas, tráfico de drogas etc.


Independentemente do número exato, o fato é que 100 bilhões de reais em tributos sonegados todo ano, um valor crível, ainda que não completamente suficiente, seriam cruciais para tirar o Brasil da crise fiscal e solucionar boa parte dos problemas de infraestrutura por meio de investimento público.


É muito difícil calcular a sonegação, pois é preciso separá-la do que é planejamento tributário e do que é simplesmente discordância de interpretação. Cada problema deve ser atacado de uma forma específica.


O fisco brasileiro faz, por exemplo, pouca ideia de quanto representaria o valor somado de sonegação de cada uma das muitas milhares de pequenas empresas, boa parte delas sequer fiscalizada, pois a tributação, assim como o País, é muito extensa e complicada. Não é possível resolver o problema da extensão, mas o da tributação sim, sem dúvida.


Como o processo tributário brasileiro leva anos a fio, muito dinheiro a receber dos contribuintes fica nele represado, especialmente no Judiciário, de modo que esse problema se soma ao da sonegação para afundar a arrecadação.


Uma primeira necessidade evidente da política tributária brasileira é simplificar o sistema, reduzindo tributos e obrigações acessórias.


Uma segunda necessidade é a reforma tanto dos fiscos e dos órgãos administrativos quanto do Judiciário. Os órgãos administrativos paritários de julgamento, modelo não encontrado em nenhum outro país do mundo, precisam ser todos reformulados com urgência, pois são seios de corrupção e de julgamentos sem imparcialidade.


O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), alvo da Operação Zelotes da Polícia Federal, que teve mais um conselheiro preso alguns meses atrás e cuja Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi encerrada sem qualquer consequência por pressão de grandes empresários, é o exemplo mais evidente de ineficiência, parcialidade e corrupção. Precisa de intervenção urgente.


Tão ou mais grave, no entanto, é o tratamento que se dá aos sonegadores no Brasil, que não correm o risco de serem presos, pois basta pagarem os valores sonegados após o crime ser descoberto. É como se um ladrão de banco, após ser pego, ficasse livre por devolver o dinheiro. É inexplicável.


Conforme demonstrado por um histórico das leis em texto anterior, isso acontece, sobretudo, porque o legislador brasileiro nunca se interessou em punir de forma séria e severa a sonegação. Além de extinguir a punibilidade do crime pelo pagamento, é possível suspendê-la ao longo do processo administrativo e por outros meios.


Ademais, a pena de 2 a 5 anos de prisão, quase nunca aplicada, não permite condenação em regime fechado se o réu for primário. Assim, aquele que arromba a porta de alguém e furta um bem no valor de 100 reais está sujeito a pena de 2 a 8 anos, mas aquele que sonega 100 milhões de reais está sujeito a pena de 2 a 5 anos, sendo que, se pagar, fica livre.


Além de acabar com a possibilidade de extinguir a punição pelo pagamento dos tributos, é preciso elevar a pena máxima do crime para pelo menos 8 anos, que permite a prisão em regime fechado mesmo do réu primário. Na Alemanha, por exemplo, a pena máxima é 10 anos.


Não é preciso ser um grande especialista para concluir que, se não há punição criminal, o ilícito deixa de ser visto pela sociedade como crime. Daí porque, se quase todo mundo sonega e se ninguém é preso, por que alguém vai pagar tributo no Brasil? Como se sabe, o senso social e de cumprimento de regras não é exatamente o forte do brasileiro.


Se o risco de sonegar tributos, ficando com muito mais dinheiro, é apenas financeiro e há chance de o fisco sequer perceber isso dentro do prazo de cinco anos, os incentivos para que se sonegue são muito maiores. Após os cinco anos, passada a exigibilidade do tributo, também não há punibilidade do crime.


De quebra, o Estado acostumou mal o cidadão com programas de pagamento de débitos tributários com anistias consideráveis de multas e juros (ex. Refis). Se é possível sonegar sem ser preso; se há chances de não ser pego; e, se pego, ainda é possível pagar os tributos sonegados quase sem multa e juros; para que alguém vai pagar tributos no prazo?


Estudos estrangeiros (em PDF) variados demonstram que, sem punição adequada, a tendência é que se sonegue muito mais, especialmente em países nos quais o retorno dado pelo Estado é considerado pequeno.


A tributação brasileira, de cima a baixo, é um conjunto de impropérios baseados em visões de extremo curto prazo, desinformadas e focadas no benefício das elites. O tratamento brando com a sonegação é uma forma de o Estado permitir que o mais rico não pague muitos tributos, afundando em regressividade um sistema que já é regressivo pelo seu próprio desenho. Está tudo errado. É um caos.


Os países desenvolvidos estão avançando com regras complexas de transparência financeira, cooperação internacional etc., mas o Brasil não consegue fazer o seu mínimo dever de casa para obrigar quem deve a pagar os tributos. Em vez disso, segue o caminho mais fácil, apesar de grosseiro e provado errado ao longo da história, cortando despesas que ajudam a reduzir a desigualdade.


A sonegação acontece em mais de 90% por aqueles que estão entre os 10% mais ricos do País, sobretudo pelo 1%. Bem mais da metade da população é de crianças, adolescentes e outros sem renda, juntamente com os beneficiados pelo Bolsa Família e recebedores do salário mínimo.


Os empregados e servidores públicos, com qualquer remuneração, têm seu imposto retido na fonte, apesar das inúmeras artimanhas usadas para pagar valores extras sem tributação, sobretudo no caso dos que ganham mais, como amplamente tem se noticiado em relação aos juízes.


Por conta da isenção dos dividendos, muitos criam empresas para receberem remuneração tributada como pessoa jurídica no regime favorecido do Simples e depois distribuir dividendos sem tributação.


Deste modo, os erros grosseiros do Brasil no trato da sonegação e no próprio desenho da tributação causam um resultado caótico não somente para os cofres, como para a distribuição de riqueza e renda, provocando uma imensa desigualdade socioeconômica, que se traduz em falta de demanda agregada, em pobreza e, portanto, em pouca produtividade e violência.


É curioso que, no Brasil, apesar da gravidade do tema da sonegação, praticamente não se escreva sobre ele. Ela é tão alta que distorce completamente o número da carga tributária. Se houvesse sonegação menor, seria possível perceber que a carga brasileira é muito maior, porém não se consegue arrecadar porque as políticas são todas mal desenhadas.


Com uma sonegação menor, além de, como dito, resolver o déficit fiscal e investir, seria possível reduzir tributos sobre o consumo, diminuindo a regressividade da tributação e o valor de bens e serviços, fazendo o acesso ao consumo mais fácil, o que geraria crescimento.


Quando se estuda com seriedade as melhores teorias e práticas internacionais, percebe-se que os problemas brasileiros são, em sua maioria, muito claros e alguns até fáceis de resolver.


O problema é que boa parte da elite econômica e política brasileira é gananciosa, “curto prazista” e completamente cega por ideologias fajutas, como a neoliberal, o que prejudica a ela mesma. Termina trocando o desenvolvimento brasileiro pela sua ânsia de se beneficiar em curto prazo, gerando inúmeros malefícios para si. É preciso salvar a elite brasileira dela própria.



*Marcos de Aguiar Villas-Bôas, doutor pela PUC-SP, mestre pela UFBA, é conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda e pesquisador independente na Harvard Law School e no Massachusetts Institute of Technology


Carta Capital


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