terça-feira, 22 de novembro de 2016

A Luta pelo Salário Mínimo no Brasil

André Calixtre

Um dos temas fundamentais hoje para a retomada do desenvolvimento com democracia é como sustentar o ciclo de transformações estruturais ao ponto não somente da melhoria dos indicadores socioeconômicos mas também de ruptura do padrão histórico do subdesenvolvimento brasileiro. Este padrão é composto pelo passado colonial, pelas profundas desigualdades geradas pelas instituições escravistas e pela incompetência industrial da classe capitalista residente; consolidando interesses arraigados no conservadorismo social, no cálculo rentista das decisões econômicas e na reprodução patrimonial da riqueza ultraconcentrada, impedindo os fluxos distributivos de renda e a consolidação de uma sociedade predominantemente salarial.


De todas as variáveis representativas do processo de desenvolvimento visando à ruptura desse cenário de profunda desigualdade, há um aspecto central: o peso que o trabalho possui na distribuição da renda (fluxo) e na apropriação da riqueza (estoques) na economia do país. Vamos tratar aqui somente da primeira dimensão, que pode ser captada de diversas formas; a mais emblemática é o comportamento do salário mínimo como farol de todas as rendas do trabalho e, portanto, indutor de ciclos de redistribuição em favor deste. Por todas as variáveis possíveis, o comportamento do salário mínimo representa as múltiplas dimensões do mercado formal e informal de trabalho, condensa tanto os ganhos estruturais no emprego, como formalização e acesso à proteção social, quanto os aumentos conjunturais do poder de compra do trabalho em si mesmo e em relação ao peso do capital.



O salário mínimo, uma das criações mais importantes e longevas da Era Vargas, desde 1940 tem seu comportamento atrelado aos ventos civilizatórios permitidos pela afirmação do trabalho. Quando cresce a participação dos salários no Produto Interno Bruto com redução das desigualdades nas rendas do trabalho, essas duas condições são explicadas por uma evolução positiva do Salário Mínimo real; quando ao menos uma das condições não se satisfazem, veja-se o Salário Mínimo real e observará movimentos de perdas de seu poder de compra. Isso acontece por meio de um mecanismo muito simples: o da sinalização de mercado.



O salário mínimo não influencia somente aqueles que dele diretamente se beneficiam (o que já atingem mais de 40 milhões de trabalhadores e aposentados nos dias de hoje), mas também sinaliza as rendas do mercado informal de trabalho e das outras rendas do trabalho. Esse fenômeno pode ser observado ao comparar a variação do salário mínimo real com a variação da renda domiciliar per capita: em períodos de involução do peso do trabalho no PIB e de depreciação do valor real do salário mínimo, a variação deste em relação à da renda per capita torna-se mais errático do que em períodos de ganhos da massa salarial com redução das desigualdades.



Ademais a sinalização de mercado, o salário mínimo também representa um formidável indicador de pressão no conflito distributivo. Em tempos de crescimento do peso do trabalho na riqueza nacional, as rendas salariais pressionam diretamente as taxas de lucro até o ponto de saturação política entre os ganhos do trabalho e os do capital. No Brasil, historicamente esta margem política é muito estreita para os ganhos salariais, atingindo pontos de ebulição em níveis civilizatórios muito inferiores ao observado nos países desenvolvidos. Historicamente, os donos do dinheiro criaram uma verdadeira aversão ao processo distributivo em seu desfavor, por mínimo que seja e mesmo quando o crescimento econômico compensasse as perdas marginais; mas a característica fundamental do subdesenvolvimento brasileiro é o completo antagonismo dos estratos ricos a qualquer tentativa redistributiva de renda ou riqueza.



Ao longo da série histórica apresentada no gráfico, pode-se observar que a evolução do salário mínimo real (R$ de 2016) somente foi positiva em tempos democráticos. Isso não significa afirmar que a democracia bastaria para aumentos de salário mínimo, Governo Dutra, do período da redemocratização e do Governo Collor-Itamar são contra exemplos nisso. O maior período de crescimento real foi na era do Trabalhismo: mesmo hoje o salário mínimo ainda não superou o valor real atingido em 1961. No entanto, deve-se considerar que o tamanho do mercado abrangido à época era muito inferior ao dos tempos atuais. De todo modo, fica claro o papel do salário mínimo no aumento da pressão do conflito distributivo: tanto o Golpe de 1964 quanto o de 2016 foram precedidos por intenso processo de aumento da participação do trabalho na apropriação da renda produzida.


O crescimento real do salário mínimo na última década, entre os Governos Lula e Dilma, foi capaz de reverter as perdas da Crise da Dívida nos anos 1980 e se aproximou do valor real da Era Trabalhista. Como as transformações urbanas, a formalização e a valorização da moeda nacional se somaram a esse processo, o valor internacional (US$ em Paridade do Poder de Compra, PPP) do salário mínimo brasileiro nunca esteve tão alto: mais que dobrou desde 2003 é é quase quatro vezes maior que em 1961, ano de pico do salário mínimo real em moeda nacional. Esse efeito extraordinário elevou a pressão do conflito distributivo em múltiplas dimensões, inclusive internacionais, representada pela emergência de um grande mercado consumidor brasileiro puxado pelas rendas do trabalho.



A consolidação desse processo civilizatório, no entanto, depende da permanência de forças políticas favoráveis ao lado do trabalho na disputa do capital pela apropriação da riqueza, mesmo que limitada apenas à esfera da renda, em especial nas chamas rendas tributáveis. Sabemos hoje que o processo de redução da desigualdade tem-se operado mais como um deslocamento da desigualdade das rendas tributáveis para as rendas não tributáveis e para os estoques de riqueza. Mas isso não diminui as notáveis transformações sociais que o contraditório processo de afirmação do trabalho durante os Governos Lula e Dilma, suficientemente grande para saturar, mais uma vez, o conflito distributivo por meio da rebelião do capital.



Assim como no Golpe de 1964, o Governo Provisório de 2016 propõe a revisão profunda da Política de Valorização do Salário Mínimo, tanto pelo lado da desvinculação deste de 22,5 milhões de aposentados, quanto pelo seu descolamento da regra de incorporação do crescimento do PIB no cálculo de atualização anual, estabelecida pela Lei 13.152/2015, vigente até 2019.



Sem a regra que permitiu sustentar o ciclo de progressos mesmo diante da crise recente, o salário mínimo seria congelado em termos reais, assumindo o comportamento típico da regra adotada na Ditadura após a grande desvalorização promovida pelos primeiros anos do Golpe de 1964. As reformas ultraliberais propostas pela interinidade vigente terão como pilar a PEC 241/2016, que complementa e aprofunda o ajuste estrutural proposto, lamentável e surpreendentemente, pelo Governo Dilma no PLP 257/2016, ambos em tramitação no congresso. O congelamento do valor real do salário mínimo representará não apenas a descompressão do conflito distributivo em favor do capital, mas o retorno ao modelo convencional de crescimento com aumento das desigualdades.



Aliado ao arcabouço de seguridade permitido pelo Estado de bem-estar social da Constituição de 1988, a Política de Valorização do Salário Mínimo representou as forças centrais do processo civilizatório recente, cujos tempos de interinidade, posto que provisórios, cuidarão de re-equacionar seus vetores distributivos com óbvia prioridade. A opção histórica do Golpe tem-se mostrado, na melhor das hipóteses, como um caminho de mediocridade para o trabalho brasileiro.


Plataforma Politica Social


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