terça-feira, 9 de agosto de 2016

Terra, teto e trabalho.

Juan Grabois

“Os movimentos querem pão para hoje, mas não fome para amanhã: temos reivindicações imediatas, mas também uma utopia a propor, que contempla a reforma agrária, a integração urbana e a inclusão pelo trabalho. Marchamos por uma sociedade sem escravos nem excluídos, com terra, teto e trabalho para todos”, escreve Juan Grabois, cofundador da Confederação de Trabalhadores da Economia Popular - CTEC e consultor do Pontifício Conselho Justiça e Paz, em artigo publicado por La Nación, 05-08-2016. A tradução é de André Langer.

Eis o artigo.

Na esquina da minha casa tem uma banca de frutas e verduras. Antes passava ali um senhor em um carrinho estropiado para pegar as sobras para os porcos. Ultimamente, vejo senhoras sem carrinhos, mas com crianças nas costas. Quando olho para saudá-las – no meu bairro as pessoas ainda se cumprimentam –, baixam a cabeça. O que resgatam não é para os porcos.

A Argentina não vai bem. Também não ia bem há um ano, nem há 10. Mas, hoje, está pior. Falta pão. O espetáculo criou um falso abismo, enquanto o verdadeiro se aprofunda no dia a dia. A fratura que se aprofunda em nossa sociedade, silenciosa como o movimento das placas tectônicas, não é televisionada nem tuitada. No entanto, do subsolo da pátria, os descamisados fazem ouvir seu grito, um clamor que se sintetiza em três palavras que o Papa Francisco universalizou e já são a bandeira de luta para milhões de excluídos em todo o mundo: terra, teto e trabalho. É disso que trata a mobilização do domingo, 07 de agosto.

Qualquer pessoa de boa vontade, no campo ou na cidade, deseja que seus filhos tenham um teto digno e possam realizar-se através do trabalho ou cultivando a terra. O sistema em que vivemos não oferece oportunidades para satisfazer esse desejo tão básico, nem perspectivas para as futuras gerações. A exclusão tem um substrato estrutural em um mundo em que o dinheiro reina em vez de servir. Disso nós queremos falar.

A integralidade do programa dos 3T que empunhamos (terra, teto, trabalho) combina as necessidades imediatas dos humildes com a perspectiva estratégica da política com letra maiúscula, essa que não se reduz à disputa partidária, mas busca construir a Argentina grande que sonhou San Martín a partir da prática cotidiana da solidariedade.

Há uma dinâmica entre pão e trabalho profundamente enraizada em nossa cultura popular que se manifesta na devoção a São Caetano. O pão da filantropia se come com vergonha, baixando a cabeça. O trabalho em todas as suas formas, mesmo aquelas não reconhecidas, tem um valor que não se esgota na panela. É o que alguns chamam de sua dimensão subjetiva. Dignifica.

São justamente esses trabalhadores sem direitos, desvalorizados e fustigados, que saem às ruas no domingo e interpelam a sociedade com a criatividade inesgotável da economia popular: carrinheiras que recuperam o descartável; costureiras que confeccionam o que compramos na La Salada (e nos shoppings); horticultores que cultivam as verduras que todos c consumimos; operários de empresas recuperadas que salvam as fábricas do abandono; construtores que edificam moradias para os que não são sujeitos de crédito; feirantes que alegram as madrugadas nas favelas; trabalhadoras comunitárias que alimentam crianças em áreas de lanche e resgatam jovens nas comunidades terapêuticas; comunicadores populares que contam o que outros calam; camponeses e indígenas que protegem a natureza produzindo alimentos.

Ninguém deles – nem os que estão organizados, nem aqueles que se viram sozinhos – quer voltar a fechar rodovias por uma bolsa de comida nem fuçar no sacolão de frutas e verduras. Querem continuar fazendo o que fazem: trabalhar. E merecem os mesmos direitos que qualquer outro trabalhador. A Confederação de Trabalhadores da Economia Popular (CTEP) reivindica sua inclusão trabalhista e um salário social complementar para que ninguém se encontre abaixo da linha da pobreza.

A paz está em perigo quando o pão fica escasso e o trabalho complicado. Lutamos desde a memória histórica de nosso povo porque queremos paz. Lutamos, ontem e hoje, porque rechaçamos tanto a manipulação política do sofrimento alheio, como a repressão das reivindicações populares. Os movimentos querem pão para hoje, mas não fome para amanhã: temos reivindicações imediatas, mas também uma utopia a propor, que contempla a reforma agrária, a integração urbana e a inclusão pelo trabalho. Marchamos por uma sociedade sem escravos nem excluídos, com terra, teto e trabalho para todos.


Unisinos


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