quarta-feira, 17 de agosto de 2016

“Não pense em crise, trabalhe”

Sobre a vadiagem e o preconceito nosso de cada dia

Átila da Rold Roesler*

É sabido que estamos vivendo um período temerário, em que os direitos humanos fundamentais previstos na Constituição Federal não são respeitados, mas o texto a seguir é sobre vadiagem, capoeira, mendicância, embriaguez, prostituição, enfim, uma singela homenagem à “moral” e aos “bons costumes” que são cultuados pela sociedade brasileira da “ordem e do progresso” desde tempos remotos e sobre como o preconceito está enraizado em nossa cultura.


Numa série de artigos publicada recentemente, Maíra Zapater nos recorda da“herança legal das ditaduras, nossas cicatrizes jurídicas” [1], e trata, especialmente, da Lei de Contravenções Penais que corresponde “a uma série de condutas cotidianas, frequentemente descritas de forma vaga e, mais recorrentemente ainda, regulamentando ações cuja reprovação caberia, no máximo, no âmbito da moral individual de cada um” [2]. O Decreto-Lei nº 3.688/41 traz em seu artigo 59 o tipo penal de vadiagem, ainda em vigor. A conduta consiste em "entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”, com pena de prisão simples, de quinze dias a três meses. O parágrafo único do dispositivo prevê que: "a aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena”. Também estão tipificadas as condutas de embriaguez (art. 62), mendicância (revogada pela Lei nº 11.983, de 2009) e de ato ofensivo ao pudor (art. 61), entre outras.


Na verdade, a previsão da vadiagem como ilícito penal é anterior ao Decreto-Lei nº 3.688/41, o que nos remete às ordenações filipinas onde se encontra o tipo no Título LXVIII, “Dos Vadios”. Já no Código Criminal do Império de 1830, o Capítulo IV tratava dos “vadios e mendigos” e o artigo 295 previa pena de “prisão com trabalho por oito a vinte e quatro dias” quando “não tomar qualquer pessoa uma occupação honesta e util de que possa subsistir, depois de advertida pelo juiz de paz, não tendo renda suficiente” [3].


Por essas terras tupiniquins, sempre foi mais fácil criminalizar determinados comportamentos que iam de encontro ao senso comum das “pessoas de bem” do que tratar de resolver nossas chagas sociais


Posteriormente, no Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, conhecido como Código Penal dos Estados Unidos do Brazil, foi mantida a tipificação penal do Império, acrescida de uma vinculação expressa aos praticantes de capoeira que, então, seriam considerados vadios e punidos com “prisão cellular por dous a seis mezes” [4]. Assim, também eram punidas as condutas de mendicância e embriaguez (Capítulo XII – “Dos mendigos e ébrios”, no Código Penal de 1890, posteriormente, no art. 60 da LCP, revogado pela Lei nº 11.983, de 2009) e até mesmo a prostituição por vias indiretas sob o tipo penal de ato ofensivo ao pudor (art. 61 da LCP).


Como se nota, a criminalização de condutas como vadiagem, mendicância, embriaguez e da prática da capoeira visava perseguir as camadas mais pobres e despossuídas da população brasileira, numa prática odiosa de higienização social. A sociedade brasileira “da moral e dos bons costumes” nunca se preocupou com a injustiça social de um país sem educação, sem cultura, sem trabalho, sem moradia, sem condições de igualdade socioeconômica, sem dignidade humana, sem nada. Por essas terras tupiniquins, sempre foi mais fácil criminalizar determinados comportamentos que iam de encontro ao senso comum das “pessoas de bem” do que tratar de resolver nossas chagas sociais.


Mas no que se refere à contravenção penal de vadiagem, a criminalização da conduta autoriza uma espécie de controle social do Estado sobre os cidadãos. Em determinada época, serviu de “passe-livre” à polícia para abordar e conduzir qualquer pessoa sob o falacioso argumento de habituamente entregar-se à ociosidade. Sem entrar em meandros técnico-jurídicos, já que a proposta do texto é sociológica e não criminal, percebe-se que a conduta típica descrita é aberta, sujeita à interpretação que mais possa favorecer às forças repressoras do Estado. Além disso, a redação do parágrafo único mostra que a norma penal somente se aplica aos pobres, aos despossuídos, desfalecidos, já que mesmo entregando-se ao ócio, basta ter renda para se eximir da pena.


Por isso, no tempo da “polícia de costumes”, era comum que o cidadão levasse todo o tempo a sua Carteira de Trabalho e Previdência Social de modo a evitar ser detido pela polícia sob a alegação de vadiagem o que, na verdade, justificava a “prisão para averiguação” muito utilizada pela ditadura Vargas e pela ditadura militar de 1964-1985. O mais grave desse fato é que tal tipo penal permanece incólume até hoje! O Estado não permite que alguém decida “não trabalhar” e pune criminalmente essa conduta omissiva...


O absurdo fica melhor demonstrado na voz dada por Marcos Valente a um “malandro” em O Estado de S. Paulo, de 18 de janeiro de 1980: “não ofendo nenhum dos direitos dos meus cônscios de civilização, respeitando-lhes todos, como faço, tenho o direito de empregar o meu tempo e de dispor do meu bento corpinho como entender melhor” [5].


Os ranços da discriminação e da segregação social não sairão de cena tão cedo


Analisando a questão de forma atemporal, entende-se que a contravenção penal visava à mobilização da população quanto à necessidade de ser um cidadão “produtivo” a fim de “colaborar” com o crescimento do país e, assim, não o onerar em virtude da indisposição para o trabalho. Preocupa quando o governo interino adota o lema “ordem e progresso”, retornando ao positivismo de Auguste Comte, porque percebe-se que os ranços da discriminação e da segregação social que permeiam a sociedade brasileira e o ordenamento jurídico penal vigente não sairão de cena tão cedo.


Com o enunciado governista “não pense em crise, trabalhe”, revela-se toda uma pauta voltada a fazer com que as pessoas trabalhem e trabalhem cada vez mais tempo por salários menores, terceirizados, doze horas por dia, oitenta horas semanais, trinta minutos de intervalo, férias negociáveis, precários, tudo em prol do crescimento econômico e do “bem da Nação”, no discurso que é vendido pela burguesia. Afinal, a contravenção penal de vadiagem permanece em vigor no Decreto-Lei nº 3.688/41 e, em tese, a conduta continua punível. Sob a interpretação da Constituição Federal, entretanto, o tipo penal de não se querer trabalhar não é razão suficiente para que alguém seja acusado de tal prática criminosa e considerando, ainda, que o fato acaba por submeter indivíduos que não conseguem trabalhar por conta do próprio sistema capitalista excludente a uma situação vexatória e constrangedora [6].


A Lei de Contravenções Penais carrega todo o preconceito da nossa sociedade, assim como o ódio aos pobres, a sanha do conservadorismo, o discurso falacioso da meritocracia, a exclusão social, a intolerância com certas formas de expressão cultural, o racismo, a proposta da “escola sem partido”. Está tudo ali. Repetindo a expressão de Maíra Zapater, o Decreto-Lei nº 3.688/41 é a “polícia fiscal da moral e dos bons costumes”: é só olhar e ver.


Delegado chico palha

Sem alma, sem coração

Não quer samba nem curimba

Na sua jurisdição

Ele não prendia

Só batia

Era um homem muito forte

Com um gênio violento

Acabava a festa a pau

Ainda quebrava os instrumentos

Ele não prendia

Só batia

Os malandros da portela

Da serrinha e da congonha

Pra ele eram vagabundos

E as mulheres sem-vergonhas

Ele não prendia

Só batia


Delegado Chico Palha – Zeca Pagodinho


Já é tarde, temos que tratar de nossas cicatrizes sociais, de nossos preconceitos, de nossa herança oligárquica, de nossa incapacidade de ver no outro o nosso semelhante, de parar de nos vender como mercadorias, de “colaborar” com a burguesia em qualquer circunstância, caso contrário, iremos nos tornar zumbis do capitalismo predatório. Ah, mas essa já é outra história...


Átila Da Rold Roesler é juiz do trabalho na 4ª Região e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).



REFERÊNCIAS


1 Disponível em: http://justificando.com/2016/05/20/a-heranca-legal-das-ditaduras-nossas-cicatrizes-juridicas/.


2 Lei de Contravenções Penais: o Direito Penal fiscal da Moral e dos Bons Costumes. Disponível em: http://justificando.com/2016/07/01/lei-de-contravencoes-penais-o-direito-penal-fiscal-da-moral-e-dos-bons-costumes/


3 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm.


4 http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html.


5 http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=171.


6 http://www.conjur.com.br/2012-jun-05/tj-sp-decide-detencao-vadiagem-inconstitucional.

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*
Juiz do Trabalho

Justificando


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