segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

O jogo de linguagem fascista

Marcia Tiburi
 
Fascismo é uma expressão que vem sendo usada para definir formas espetaculares de exposição de preconceitos raciais, sexuais, de gênero, de classe e vários outros ao nível do cotidiano concreto ou virtual. Podemos lembrar do fascismo italiano e sua imitação dos rituais de poder da Roma antiga. Mas o fenômeno atual caracteriza-se por explosões de ódio que causam espanto a quem olha o mundo e a sociedade em termos democráticos.

Guardados na intimidade, preconceitos são semente de fascismos potenciais. Mas a potência não é o ato e ninguém pode avaliar o sentimento dos outros senão por meio de sua expressão. A prova que temos do fascismo de qualquer um é, portanto, sua expressão verbal, gestual ou prática.


Humilho, logo existo


O fascismo é uma espécie de teoria-prática de ação que começa com atos de fala ética e politicamente empobrecidos.

O código verbal é um dispositivo comum e simples que usamos tanto para produzir a mais básica socialização quanto a mais complexa metafísica. Hoje, ele mesmo se torna espetáculo. A gritaria, o xingamento, a falta de respeito em geral não se expressam apenas em palavras e frases, mas em notícias e formas discursivas em geral.

A grave incapacidade de relacionar-se com aquela figura da diversidade que podemos denominar de “outro”, da qual essas formas de linguagem são prova, põem em questão a transformação do verbal em “capital”. Aqueles que, operando dentro de um regime de pensamento democrático, ficam perplexos ou revoltados com isso, contrapõem-se aos que se deixam fascinar. Se os primeiros interpretam a negação do outro como perda ética, política e social, os segundos, deslumbrados e fetichizados pela palavra transformada em mercadoria, descobrem o lucro que a negação do outro pode lhes fornecer em termos subjetivos. Participam do espetáculo verbal da gritaria sentindo-se capitalizados subjetivamente.


Em termos simples, isso quer dizer, que há uma vantagem pessoal impagável no ato de negar o outro e de expressar essa negação com palavras. Essas palavras são publicitárias. Ditas na forma de slogans fáceis de repetir, elas garantem ao fascista um lucro. Incansável no ato de repetir frases feitas e clichês, ele parece colocar moedinhas em um cofre. A moedinha pode ser a frase nas redes sociais. Essa busca por lucro por meio de uma repetição se torna literalmente um modo de ser.

Incapaz de supor a existência da “alteridade”, o fascista encontra um modo de ser. Como experiência de si podemos considerar o fascismo um logro, mas não para quem, vivendo um profundo empobrecimento subjetivo, não tem outra saída. A negação do outro é funcional para quem dela se serve. Ela pode ser o único jeito de garantir que se existe. Em termos simples: de conquistar um lugar no mundo.

O fascismo é, em qualquer sentido, uma aberração política, mas cujo fundo existencial é a profunda miséria subjetiva de nossa época. Seu cogito: humilho, logo existo. Ele serve como prova de si para quem vive vazio relativamente ao pensamento, aos afetos e à própria ação. O fascista deve pensar que “é alguém” por meio da transformação do outro em “ninguém”.


As vantagens do fascista


A humilhação produzida esconde a humilhação vivida. Sabemos que se aprende a humilhar sendo humilhado. Talvez mostrar no outro o que se esconde em si mesmo possa explicar um lucro no estilo do velho “levar vantagem”. Ora, a humilhação verbal é fácil; está disponível, sobretudo, nas redes sociais. O discurso preconceituoso permite hoje em dia, além de tudo, conquistar fãs, dirigir mentalidades, determinar comportamentos.

O fascista real tem algo de um sacerdote ou de um publicitário altamente expressivo que, em vez de pregar o amor, vende, sem vergonha, o ódio contra o outro. E, num mecanismo de inversão, típico do seu raciocínio fundado na chance de aniquilar o outro, ao contrário da vergonha – que seria inevitável caso ele percebesse a si mesmo -, ele se orgulha do que diz.

Do “orgulho hetero” ao “racismo reverso”, da “culpabilização das vítimas” ao “fazer-se de vítima enquanto é algoz”, é sempre a mesma lógica de ocultamento de si pela humilhação – ou afirmação negativa – do outro o que está em cena. A própria democracia muitas vezes é alegada em termos os mais autoritários.


Impotente para a compreensão do outro, para perguntar, para mudar de ideia, resta-lhe tentar sentir-se sempre cheio de razão. A impotência para o questionamento tem um nome metafórico cuja validade técnica, infelizmente, foi banalizada. Trata-se da “burrice” como impotência não apenas relativa ao saber sobre as coisas, mas relativa ao outro que sempre nos serve de espelho.


Carta Capital



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