domingo, 10 de janeiro de 2016

Ideologia e política


Leandro Konder

O campo onde a ideologia manifesta mais explicitamente seu poder de enviesamento é, com certeza, o campo da atividade política.

O sujeito da ação política é alguém que quer conhecer o quadro em que age, quer poder avaliar o que pode e o que não pode fazer, mas, ao mesmo tempo, é um sujeito que depende, em altíssimo grau, de motivações particulares – suas e dos outros – para agir.


Por mais sinceros que sejam os princípios universais que adota, o sujeito da ação política atua de maneira a mobilizar pessoas que, de fato, só se mobilizam em função de motivações pessoais. De desejos próprios, de interesses particulares.

A política é levada, assim, a lidar com duas referências contrapostas, legitimando-se através da universalidade dos princípios e viabilizando-se por meio das motivações particulares.

O problema se agrava, ainda, na medida em que, para enfrentar a concorrência, para competir com outros sujeitos, que procuram arregimentar seguidores para uma caminhada que se dispõe a seguir em outra direção, o político é levado as misturar as duas coisas: o universal e o particular. E é a confusão dos dois polos que manifesta, de modo explícito e permanente, a presença do viés ideológico.

Uma política que se subordinasse rigorosamente à universalidade dos princípios não conseguiria promover uma mobilização ampla, consistente e duradoura de indivíduos particulares. E – o que é pior – caso tal política venha a funcionar ela terá efeitos deformadores extremamente graves na cabeça daqueles que ela arregimentou, caracterizando-se como um movimento de produção de fanáticos.

Por outro lado, uma política que esvaziasse os princípios universais de qualquer conteúdo real, que se dispusesse a aproveitar com total desenvoltura quaisquer vantagens circunstanciais, sem se preocupar com compromissos programáticos ou com metas a médio e longo prazo, seria uma política de oportunistas, de indivíduos incapazes de se elevarem ao nível de uma dedicação fecunda à comunidade.

Em geral, os caminhos trilhados pela política evitam uma opção explícita por uma dessas linhas extremadas: o doutrinarismo, o oportunismo crasso, o cinismo ostensivo ou a completa indiferença. São frequentes as combinações de elementos representativos de tais direções, porém combinados em graus diversos. E é nessa combinação hábil que se enraíza a ideologia.

Cada pessoa, cada grupo, ao intervir na política, ou ao se omitir em face dela, tende a acreditar que seu ponto de vista é o mais adequado às necessidades ou às conveniências da humanidade do que o ponto de vista dos outros.

Quando se trata do exercício do poder, aqueles que têm a posse dos grandes meios de produção inevitavelmente tendem a ficar convencidos (e tratam de convencer os demais) de que a situação de que se beneficiam é, se não a melhor, ao menos a menos ruim das situações possíveis. Na medida em que os conhecimentos proporcionam algum poder, aqueles que detêm o saber tendem a acreditar necessariamente que a superioridade da sua cultura só não é reconhecida por ignorância ou por má fé. Os ricos, por sua vez, costumam crer que a existência de diversidade nas fortunas é normal, já que pode ser constatada em todas as sociedades. E os privilegiados se inclinam a considerar seus privilégios como direitos.

Essa capacidade de se auto-iludir confere aos detentores do poder e da riqueza uma eficiência maior na argumentação, no modo como iludem os outros. A mentira desavergonhada não consegue, em geral, ser convincente como o discurso político acolhe elementos de auto-ilusão.

É sintomático que a mitologia grega, tão rica, não tenha tido um deus específico para a política. O comércio tinha um deus, que, aliás, era bastante safado: Hermes (o Mercúrio dos romanos). A indústria tinha um deus: Hefesto (o Vulcano dos romanos), casado com Afrodite, a deusa da beleza, e traído por ela. A sabedoria tinha uma deusa: Palas Atena (a Minerva dos romanos). E o deus da política, quem seria?

Zeus, o deus dos deuses, fazia política o tempo todo, no Olimpo, mas nunca se dispôs a ser o deus da política. Os atenienses do tempo de Péricles prezavam muito as prerrogativas da cidadania, discutiam bastante. Um pouco mais tarde, Aristóteles escreveu um famoso tratado intitulado A política. A palavra derivava de polis e e designava uma relação intersubjetiva. Enquanto a poiesis era a produção de uma coisa (relação sujeito/objeto), a práxis era a ação dos cidadãos uns em relação aos outros, era a atividade do homem livre empenhado em persuadir os demais (relação sujeito/sujeito).

Apesar da importância que reconheciam à atividade política, os atenienses – que foram mais longe do que todos os demais povos da Antiguidade na experiência da polis – não tinham um deus para ela.

A política, com suas ambiguidades, com suas tensões entre o universal e o particular, entre o ideal e o interesse, com suas possibilidades libertárias e seus poderosos meios de manipulação e de opressão, com sua grandeza e suas misérias, talvez tenha parecido aos gregos um espaço humano, demasiado humano para que algum deus o apadrinhasse.

Em Atenas, a cidade deu origem à ideia de cidadania. O conceito chegou até nossos dias, porém seu significado sofreu alterações importantes. Para Aristóteles, cidadão era quem podia – e devia – participar das decisões do governo. Quer dizer: pela primeira vez na história os cidadãos constituíam um grupo numeroso, mas ainda assim minoritário, já que ficavam de excluídos da cidadania os escravos, as mulheres e as pessoas que não haviam nascido em Atenas.

Muitos séculos mais tarde, nas condições da história moderna, essa concepção de cidadania mudou. Desenvolveu-se a exigência democrática de que os direitos da cidadania valessem para todos e incluíssem não só os direitos políticos mas também os direitos civis. O pensamento político mais avançado vê a cidadania como uma meta a ser conquistada e uma condição a ser aprimorada por todos e para todos.

Como escreve Carlos Nelson Coutinho: “A cidadania não é dada aos indivíduos uma vez para sempre, não é algo que vem de cima para baixo, mas resultado de uma luta permanente, travada quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas, implicando assim um processo histórico de longa duração” (Coutinho, 2000, p. 51)

Em face desse processo histórico, a ideologia conservadora atua de duas maneiras diversas: 1) em uma linha explicitamente antidemocrática, de oposição ao processo e 2) em uma linha que declara sua adesão ao movimento de construção e aprimoramento da cidadania, porém de fato subordina o apoio à preservação do controle feito por setores de elite.

Na primeira linha se encontram movimentos de extrema direita, como o fascismo e o nazismo. Em vez de se limitarem a uma resistência passiva às mudanças, esses conservadores radicais são ativistas, tomam iniciativas ousadas. Em sua atuação no século XX, eles não hesitaram em saquear até o quadro das experiências práticas e o acervo conceitual da esquerda revolucionária.

Mussolini, por exemplo, buscou em Marx dois conceitos essenciais (modificando-os, é claro): o de luta de classes e o de ideologia. Reconhecendo a existência da luta de classes, o Duce corrigiu o autor de O Capital, sustentando que era exatamente para disciplinar o conflito que precisava ser criado o Estado forte, ditatorial, capaz de se impor tanto aos capitalistas como aos trabalhadores: o Estado fascista.

E, admitindo a justeza da observação de Marx segundo a qual é impossível avaliar mais aprofundadamente uma ideia sem levar em conta seu condicionamento histórico e seu uso social, Mussolini concluiu que afinal tudo é ideologia e no discurso só importas mesmo a utilidade imediata do que está sendo dito. De tal modo que a unidade de teoria e prática, pensada por Marx, virou uma pragmática identidade de teoria e prática. A teoria perdeu a capacidade de criticar a ação, o conhecimento deixou de ter exigências próprias significativas.

Coerente com sua perspectiva, Mussolini dispensava qualquer compromisso com a coerência. Definia o fascismo como um movimento super-relativista, porém advertia que ele precisava do mito da italianidade. Anunciou que os fasci jamais se tornariam um partido e poucos meses depois presidiu o congresso de fundação do Partido Nacional fascista, caracterizando-o como o coroamento da experiência anterior. Fez pronunciamentos pela monarquia e pela república.

Justificando a violência fascista, assegurou que ela não era imoral porque não era fria e calculada, e sim instintiva e impulsiva. Alguns meses mais tarde, exaltou a violência fascista porque ela era “pensante, racional, cirúrgica” 9Konder, 1977, p.32).

Tudo isso para o Duce era compatível com sua concepção da ideologia, quer dizer, correspondia a um conceito de ideologia que reduzia a construção do conhecimento à racionalização de desejos e interesses e à produção de armas usadas nos conflitos políticos, sempre em função das circunstâncias e das conveniências momentâneas.

Essa comcepção rudemente pragmática de ideologia não foi adotada apenas por Mussoliuni e pelos fascistas; com algumas variações, de fato, ela teve muitos outros adeptos nos anos 20, 30 e 40, entre eles numerosos representantes da versão mais difundida do marxismo-leninismo.

E ainda convém acrescentar: até um historiador muito distante do fascismo e do movimento comunista, um pesquisador que fez observações muito agudas sobre fenômenos ideológicos, como Noberto Elias, endossou essa forma extremamente empobrecida do conceito, o que o levou, afinal, a recusá-lo.

Em sua fina análise do precesso civilizador, depois de ter estudado o condicionamento social dos medos e ansiedades dos indivíduos, sua força, forma e papel na personalidade das pessoas, Elias não se dá conta dos pontos de contato existentes entre sua abordagem e as preocupações que se manifestam na questão da ideologia, como ela emerge do pensamento de Marx.

E, na parte final de sua obra, explicita sua rejeição do conceito que atribui ao outro nos seguintes termos: “Não faz sentido explicar o processo civilizador como uma superestrutura ou ideologia. Isto é, exclusivamente a partir de sua função como arma na luta entre interesses sociais específicos” (Elias, 1993, vol. 2, p. 235).

Mas essa breve referência ao mal-entendido encontrado no livro de Nobert Elias não deve nos afastar do objetivo que pretendemos alcançar, que é o de dizer algo sobre as duas linhas de atuação mais influentes da ideologia conservadora no âmbito do processo democratizador de formação da consciência da cidadania.

Já dissemos algo sobre a linha mais drasticamente antidemocrática, agora cabe nos determos rapidamente sobre a segunda linha, que subordina seu apoio ao fortalecimento da cidadania ao controle do processo por parte de uma elite.

Como ideologia, o elitismo é bem mais sutil do que tendências ostensivamente antidemocráticas. Em muitos casos, os representantes dessa linha que se declara favorável ao fortalecimento da cidadania, porém se preocupa com fenômenos de massificação, percebem e apontam problemas reais, dificuldades que o processo de democratização da sociedade não pode ignorar. Embora abordem a questão de um ângulo que lhes impõe limites para a análise, revelam às vezes perspicácia na crítica de procedimentos demagógicos e atitudes populistas. Reagem contra a atribuição de saberes um tanto mágicos às massas populares (como se os de baixo tivessem sido miraculosamente preservados de quaisquer efeitos deformadores exercidos pela ideologia dominante).

Para os teóricos mais influentes ligados a essa tendência, sempre existiram de um lado os que governam e de outro os que são governados. E, dando um passo adiante, já caracterizado como um movimento nitidamente ideológico, esses teóricos (Mosca, Pareto etc.) asseguram: sempre existiram e sempre existirão essas duas categorias.

A constatação de uma determinada situação histórica que tem perdurado é transformada em uma tese que engessa o quadro, coagula a situação, eterniza e legitima a contraposição, estratificando-a e anulando assim, toda possível história futura diferente, exterminando toda possibilidade de mudança inovadora.

Existem, sem dúvida, diferenças entre os seres humanos, pessoas que se mostram mais bem preparadas e mais talentosas que as outras, e que constituiriam de algum modo uma elite, que não se confunde com os grupos de detentores do poder político e da riqueza. Mas esse destaque é circunstancial, o espaço dos melhores é ocupado por uma população flutuante, seus habitantes são provisórios e não têm nele residência garantida. O sábio de hoje pode se tornar rapidamente o tolo de amanhã. De uma hora para outra, qualidades viram defeitos, acertos resultam em erros. E a qualquer momento, os de baixo – sem que os idealizemos! – podem nos surpreender com a perspicácia de seus insights.

A distorção ideológica do elitismo não está no fato de ele advertir contra os riscos do plebeísmo, de uma perda de qualidade cultural ou de socialização da vulgaridade, e sim na incapacidade de seus teóricos para enxergar as potencialidades do aprendizado das camadas populares através da participação ampliada no exercício da cidadania.

Assustados com as expressões mais barulhentas dos movimentos sociais, os teóricos do elitismo repetem que são favoráveis ao progresso, mas sem sacrifício da ordem; recomendam prudência e moderação; e asseguram que qualquer radicalização nas reivindicações populares igualitárias pode prejudicar os delicados mecanismos de proteção das liberdades individuais.

A distorção ideológica começa na resposta que esses teóricos dão à questão proposta por Antonio Gramsci: é impensável a possibilidade de que algum dia venha a ser superada a divisão dos seres humanos entre governantes e governados? Entre dirigentes e dirigidos?

Na medida em que consideram a hipótese da superação da dicotomia perigosamente utópica, os teóricos do elitismo não só se recusam a admiti-la (não se permitem sequer enxerga-la como possibilidade) como se insurgem contra aqueles que a reconhecem como futuramente alcançável.

Mesmo entre os liberais, essa distorção ideológica pode ser percebida com sintomática clareza. Se fossem coerentes com o discurso que fazem, ainda que céticos em relação à utopia de uma sociedade integralmente democratizada, eles aceitariam como legítima a busca dessa democratização e defenderiam o direito dos outros de tentar alcança-la. (Podemos lembrar a frase famosa do liberal Voltaire: “Posso não concordar com nenhuma palavra daquilo que o senhor está dizendo, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”.) No entanto, ao longo da história dos dois últimos séculos, numerosos liberais têm, com frequência, apoiado ditaduras e políticas de repressão aos socialistas e às correntes de esquerda, em geral.

Esse fenômeno, aliás, nos faz lembrar que uma das característica da ideologia, tal como Marx a analisou, está no fato de que ela se revela com maior franqueza na ação do que no discurso.

Falando, o político – desde os tempos de Péricles, em Atenas – pode conseguir convencer os outros de que os interesses particulares por ele representados coincidem com os interesses gerais da sociedade. Agindo, porém, pondo em prática suas ideias, traduzindo-as em medidas práticas, que são sentidas no cotidiano da comunidade, cada um terá ocasião de avaliar por conta própria, com maior objetividade, o conteúdo real da política que está sendo implementada.

[KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p 248-256]

Biliografia:

COUTINHO, Carlos Nelson. Contra a corrente. São Paulo: Cortez, 2000.

KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. Rio de Janeiro: Graal, 1977.

ELIAS, Nobert. O processo civilizatório. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

Fundação Lauro Campos


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