quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Sem Dinheiro, o SUS morre


O Brasil precisa encontrar novas fontes de financiamento da saúde e investir na produção de remédios, dizem especialistas
Roberto Rockmann 
A Marcha em Defesa do SUS chamou a atenção da sociedade para o funcionamento da saúde pública

O financiamento do Sistema Único de Saúde, criado pela Constituição em 1988 para garantir atendimento público e universal aos brasileiros, está em xeque.

A ascensão social das últimas décadas ampliou o mercado consumidor de remédios. A mudança demográfica elevou o envelhecimento da população. E uma modificação no perfil epidemiológico impulsiona o registro cada vez mais frequente de males comuns em países desenvolvidos como tipos variados de câncer e o diabetes. Esses três fatores pressionam o custo do sistema e provocam um déficit na conta da indústria farmacêutica nacional sem precedentes.

Os gastos no setor têm sido crescentes, o que piora o quadro no momento em que o País registra uma brutal queda de arrecadação em decorrência da crise econômica. O principal temor dos debatedores reunidos no seminário Os Desafios da Saúde no Brasil do Século XXI é que o aperto fiscal leve União, estados e municípios a reduzirem os aportes na área. O debate, mais um evento da série “Diálogos Capitais”, aconteceu em São Paulo na segunda-feira 30.

Criado em 1988, o SUS é um dos maiores sistemas públicos em operação no mundo, mas para assegurar a sua universalidade é essencial garantir uma fonte segura de financiamento. Em 1990, o então presidente Fernando Collor eliminou o artigo que regulamentava a origem dos recursos. Em 1997, Fernando Henrique Cardoso criou a CPMF, mas, em 2007, o PSDB, na oposição, articulou a extinção do imposto. A CPMF garantia um terço do orçamento do Ministério da Saúde e hoje representaria uma arrecadação de 63 bilhões de reais.

“O gasto público em saúde no Brasil está em 4,7% do PIB, enquanto nos sistemas isolados na Europa está em 8%. O SUS tem ficado mais caro por causa do novo perfil de doenças do País, do aumento da expectativa de vida e da obesidade. Só 25% da população tem acesso a seguro”, descreveu Hêider Aurélio Pinto, secretário de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde.

José Gomes Temporão, ex-ministro e diretor-executivo do Isags. (Marcelo Pereira/ M11 Photos)

“O SUS nunca esteve tão ameaçado, jamais foi tão grande a diferença entre o que ele teria de oferecer e o que ele oferece. Os custos são mais altos, o financiamento é o mesmo”, destacou Antônio Britto, presidente da Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa. Por causa das demissões provocadas pela crise econômica neste ano, mais de 500 mil brasileiros deixaram de ter seguro de saúde até outubro, segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar.

O gasto em saúde per capita soma 525 dólares no Brasil, abaixo dos 721 dólares gastos na Argentina, dos mil dólares desembolsados no Uruguai e dos 4 mil dólares do Canadá. “Se queremos cumprir o que a Constituição estabelece, teremos o desafio de obter mais recursos e melhorar a gestão dos recursos”, disse Pinto. O orçamento do ministério, em 2015, chegava a 100 bilhões de reais, mas 13 bilhões de reais acabaram contingenciados pelo ajuste fiscal. Na proposta para o próximo ano, o orçamento da pasta estima um déficit de 9,2 bilhões de reais.

Para José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde e diretor-executivo do Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde, sem o SUS, o Brasil viveria uma barbárie social. “A questão do financiamento é primordial e traz na essência a necessidade de se discutir o Estado, uma reforma fiscal, pois para atender à utopia proposta na Constituição é preciso chegar ao padrão inglês em que 85% do gasto em saúde é público.” No Brasil, apesar de um quarto da população ser atendido pelo sistema privado, o segmento responde por metade dos gastos em saúde. “O que queremos do SUS? Há muitos projetos no Congresso que querem minar o sistema, como aquele do deputado Eduardo Cunha”, ressaltou o ex-ministro.

Temporão listou caminhos para assegurar o financiamento à saúde pública. Apenas 15% da população brasileira fuma, mas, segundo ele, os impostos sobre os cigarros são muito inferiores aos cobrados em outros países do mundo. Bebidas destiladas e cerveja também oneram o sistema de saúde, mas têm tributos abaixo da média internacional. Refrigerantes e sucos processados poderiam ter alíquotas de impostos mais altas que aquelas dos alimentos naturais. “Por ano, no Brasil, o trânsito faz 100 mil vítimas, então esse é outro ponto a ser analisado.”

O contexto atual de desaceleração da economia, menor arrecadação tributária e o aperto fiscal tornam a questão de financiamento ainda mais importante. “Poderemos ter, em 2016, a redução de alguns serviços de prefeituras e governos estaduais e isso abre uma brecha para a deslegitimação do setor público, assim como aconteceu na década de 1980. Precisamos começar a discutir o que queremos da saúde pública e como vamos financiá-la”, afirmou o secretário.


Além do financiamento, a universalização depende da formação de um número maior de médicos e de uma melhor distribuição dos profissionais pelo País. “O Brasil tem poucos médicos e mal distribuídos entre as regiões e nos estados”, afirmou o secretário. Segundo o último levantamento do ministério, existem 1,8 médico por mil brasileiros. O número é inferior àquele de países europeus e de vizinhos sul-americanos. Na Argentina, a proporção é de 3,2. Em Portugal e na Espanha, 4. Em Cuba, 6,8. São Paulo e Rio de Janeiro possuem médias próximas àquelas de países desenvolvidos: 2,49 e 3,4 médicos por mil habitantes, respectivamente. Pará e Maranhão, por sua vez, registram números preocupantes: de 0,77 e 0,58. “Apenas 30% do estado de São Paulo apresenta taxa mais elevada que a média nacional.”

Segundo o secretário, em dez anos, foram abertos 146 mil postos de trabalho para médicos, mas, nesse período, as universidades brasileiras formaram apenas 64% da demanda. Para aumentar essa taxa, o ministério mira a ampliação de vagas em universidades públicas e privadas. O plano do ministério é abrir 11,5 mil novas vagas de graduação até 2017 e outras 20 mil de residência até 2018. A meta da pasta é sair dos atuais 374 mil médicos para 600 mil, em 2026. Essa expansão seria o suficiente para igualar o Brasil a países que têm um sistema público de saúde de referência, entre eles o Reino Unido, que possui 2,7 médicos por mil habitantes.

Para o governo, o Programa Mais Médicos trouxe bons resultados. A iniciativa atende 72,8% dos municípios e todos os 34 distritos indígenas, vários deles localizados em áreas pobres e de difícil acesso. Nas cidades atendidas pela ação, houve um amento de 33% nas consultas na atenção básica. Isso significou uma redução de 4% nas internações, um índice 8,9% superior ao de outros municípios que não participam do programa. Por causa da abrangência do Mais Médicos, em dois anos houve um crescimento de 4,5 vezes na cobertura de atenção básica. Nesse ritmo, estima-se que 75% da população brasileira seja coberta no próximo ano.

Sexto maior mercado de saúde no mundo, o Brasil tem outro desafio: ampliar a inovação na indústria e aumentar sua musculatura para atender à crescente demanda. Ao lado das empresas que atuam no segmento eletroeletrônico, os laboratórios farmacêuticos nacionais detêm um dos maiores déficits industriais. A inclusão de novos consumidores de medicamentos a partir da ascensão social das classes C e D, o envelhecimento da população e a ampliação do diagnóstico de doenças de “Primeiro Mundo” tendem a aumentar a demanda por remédios e piorar o desempenho da balança comercial da área, caso não se trace um plano de investimentos em inovação e desenvolvimento dos laboratórios.

“A questão é como fortalecer a inovação e criar um ambiente que favoreça esses investimentos”, destacou Pedro Palmeira, chefe do Departamento da Área Farmacêutica do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Dos dez medicamentos mais vendidos no mundo, sete resultam da manipulação da biotecnologia, um segmento que tem ganhado espaço. “Hoje nos encontramos em um momento no qual existem empresas capazes de dialogar sobre inovação radical e outras que estão aptas a fazê-la.”

Um exemplo é o laboratório Cristália. Os especialistas em pesquisa científica da empresa desenvolveram o carbonato de lodenafila, princípio ativo do Helleva, colocado no mercado após sete anos de pesquisas. Trata-se do primeiro fármaco de origem sintética desenvolvido integralmente no Brasil, da concepção da molécula aos estudos clínicos. É a quarta molécula original criada no mundo para o tratamento da disfunção erétil. O fármaco foi patenteado nos Estados Unidos, Europa e Hong Kong. Em 2015, o Helleva começou a ser exportado para o México. Ogari de Castro Pacheco, fundador do Cristália, informa: “Temos 84 patentes e 168 em análise. O Brasil tem a chance de não perder o bonde da história, podemos fazer diferente”.

Carta Capital


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