quarta-feira, 25 de março de 2015

Regulação da mídia aguça democracia, não o contrário, alertam especialistas


Pamela Mascarenhas

Os debates sobre a necessidade de regulação da mídia no Brasil já vêm há muito tempo. Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha, Canadá, Espanha e até Argentina, mesmo contra a força do grande conglomerado de mídia que significava o Clarín, já passaram pelo processo. No Brasil, quando se fala no assunto, ainda se remete, na maioria dos debates, à ideia de que haveria um objetivo escondido de controlar a imprensa e tolher a liberdade de expressão. A ação, contudo, se baseia em questões legais para garantir justamente o contrário, destacam especialistas. Como se trata também, todavia, de combater monopólios e oligopólios de mídia, natural que o debate seja desvirtuado, completam.

Antes mesmo do anúncio dos novos ministros do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff, a grande imprensa noticiava que Ricardo Berzoini seria colocado no Ministério das Comunicações para tocar o projeto de regulação da mídia. A nomeação realmente veio e, logo no início de janeiro, o novo ministro da pasta declarou que o governo iria apresentar proposta de regulação no segundo mandato da presidente.

"Já existem dispositivos, premissas e princípios. É preciso discutir se está bom, ou não está bom. Claro que nós temos uma conjuntura tensa, difícil, mas vamos saber conduzir com tranquilidade. Não temos uma crise institucional. Temos é uma tentativa de fomentar uma crise política", disse Berzoini à Rádio Brasil Atual no início deste mês.

Para a advogada Veridiana Alimonti, do Conselho Diretor do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, por mais que dificuldades surjam para que o projeto vá à frente, é importante que o assunto não saia de pauta. Ela explica do que se trataria uma regulação econômica no setor, que seria a implementada no país conforme sinalizações do governo, e ainda o que poderia vir a ser uma regulação de conteúdo, que poderia ser descartada por aqui, mas que ainda assim seria importante, ela frisa.

"A situação (política) é complicada, prevê que essa pauta mais uma vez sofra um revés, como já sofreu no primeiro mandato do governo Dilma. No final do governo Lula, já tinha um projeto para ser discutido, que a gente não chegou a conhecer, mas já tinha uma pauta mais elaborada que não foi para frente, e agora essa situação pode dar mais força para aqueles que sempre estão presentes para dizer que isso não deve ser feito. Mas não sou eu que vou descartar a pauta, cabe pressionar para que ela continue na agenda", destaca.

Veridiana salienta que o discuso de que a regulação dos meios de comunicação é uma censura, na verdade, é uma inversão do seu real objetivo, pois é algo que faz parte, principalmente, da Constituição Federal, mas que ainda não se reflete nas normas infraconstitucionais (norma, preceito, regramento, regulamento e lei hierarquicamente abaixo da Constituição Federal) de uma maneira detalhada.

De acordo com a advogada, o Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, que chegou a receber alterações como a de 1967 que trata de limites de propriedade, tem limitações pequenas sobre concentração de empresas nesse mercado. Limita apenas quantas emissoras de rádio ou de televisão uma mesma empresa ou uma mesma pessoa pode ter, não fala em grupo empresarial. Não garante, ainda, um controle da existência de propriedade cruzada, que é quando uma empresa tem uma determinada quantidade de diferentes meios de comunicação. A Constituição também fala da importância de produção independente e regionalização da produção, mas não há detalhes estabelecendo porcentagem ou critérios.

"É interessante dizer que, quando a gente fala da regulação dos meios de comunicação, a gente está tratando, principalmente, de rádio e televisão, que são serviços públicos, de acordo com a Constituição Federal e com a regulação infraconstitucional. É uma concessão de serviço público que deve atender a um interesse público, tanto o rádio quanto a televisão."

A estrutura jurídica reconhece que a liberdade de expressão só é garantida se não houver oligopólio e monopólio

A Constituição Federal veda monopólio e oligopólio nos meios de comunicação social, e o artigo que estabelece isto é justamente o que garante a liberdade de expressão na comunicação social. "A estrutura jurídica do estado democrático brasileiro reconhece que a liberdade de expressão só consegue ser garantida na comunicação social se não houver oligopólio e monopólio. Como a gente combate oligopólio e monopólio? Com regulação. O mercado sozinho, embora alguns acreditem que sim, não combate a concentração. Ele, muitas vezes, tende, sim, a se concentrar, se não houver mecanismos de controle em relação a isso."

A regulação da mídia, então, deve funcionar tanto para estabelecer limite da propriedade no mesmo meio de comunicação, cadeia de produção ou diferentes meios, o que já é previsto na legislação de outros países como Estados Unidos, na Europa e na América Latina, e ainda estabelecer critérios dentro da própria programação de uma emissora, explica Veridiana. Não é só garantir que existam diferentes agentes prestando serviço, mas também que na prestação do serviço existam regras para garantir a diversidade dessa programação ou, pelo menos, estimular essa diversidade.

Outra questão que uma regulação econômica da mídia trataria seria a regionalização da produção. Hoje, no país, grandes emissoras -- Globo, SBT, Band, Record -- têm concessões só para alguns municípios, mas se organizam em redes pelo Brasil com afiliadas, que são outras emissoras, com outros proprietários. Embora sejam emissoras regionais, elas acabam passando praticamente toda a programação das grandes. "A regionalização da produção é também uma maneira de fazer com que a programação da própria emissora seja mais diversa, mostre outras pessoas, produtores, roteiristas, diretores."

Veridiana aponta também a questão da complementaridade dos sistemas, que também tem laços com a Constituição Federal. Esta diz que a radiodifusão tem de observar o princípio da complementaridade de sistemas, entre sistema privado, estatal e público. O estatal seriam os canais de poder público que falam das atividades do poder público, como a TV Justiça e a TV Senado, que funcionam como uma prestação de contas da atividade do poder público. O sistema privado, por sua vez, está muito ligado ao sistema comercial, que é o que se tem no Brasil como hegemônico, e o sistema público tem relação com emissoras educativas ligadas à pastas do governo como secretarias de cultura e educação, mas que não fazem prestação de contas do Estado, têm um caráter diferenciado de programação.

"O ideal seria que as outorgas fossem divididas entre os três (sistemas), mas o que a gente vê é a predominância das três partes", aponta a advogada, falando ainda da necessidade de superar desafios do sistema público de comunicação brasileiro, que foi estruturado com a criação da Empresa Brasil de Comunicação, mas que precisa ainda se consolidar em termos de financiamento e autonomia.

Além desses pontos referentes à regulação econômica, Veridiana destaca a importância da regulação de conteúdo, que vem sendo deixada um pouco de lado e que não deveria ser encarada como censura. "A regulação de conteúdo está longe de ser censura, a gente já tem regulação de conteúdo na nossa legislação atual, já tem horário para programas educativos, publicidade. Regulação de conteúdo não é avaliar previamente o que está sendo transmitido e decidir se vai ao ar ou não, claro que não. É ter mecanismos para responsabilizar as emissoras e agentes específicos caso haja alguma ofensa à legislação, o que, claro, vai se pautar em critérios democráticos. É também um desvirtuamento do debate dizer que regulação de conteúdo é censura."

Armando Boito Junior, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, também é favorável à regulação da mídia, por ser a única maneira de garantir uma efetiva liberdade de expressão a um regime democrático. O que o Brasil tem hoje, acredita o professor, é uma exagerada concentração dos meios de comunicação, onde o mesmo grupo detém diferentes tipos de meios, e transmite, publica e vende.

Ao oligopólio econômico corresponde um oligopólio de opiniões, de análise

"O Brasil está muito atrasado nesta matéria. Ao oligopólio econômico corresponde um oligopólio de opiniões, de análise. Então, você não pode ter uma efetiva liberdade com restrições econômicas tão grandes à expressão do pensamento, das diferentes correntes, dos diferentes setores, dos diferentes grupos, dos mais variados. A regulação da mídia é um passo fundamental para a democratização da sociedade brasileira", salienta o professor.

Para ele, os grupos que tentam sustentar a tese de que a regulação econômica da mídia é contrária à liberdade de expressão são justamente os grandes meios de comunicação que, por intermédio do poder econômico e dessa situação de ausência de regulação, têm condições de expressar seus pensamentos e opiniões em todos os grandes meios, gerando uma espécie de pensamento único.

"Por exemplo, O Globo, Estadão e Folha, os estudiosos que acompanham essas publicações costumam evidenciar a uniformidade das manchetes. São sempre as mesmas, não só dando o fato mas também emitindo uma opinião, e esse fato e essa opinião são sempre os mesmos, nos três principais jornais do país. Será que há uma unanimidade no Brasil sobre quais são os principais fatos a serem destacados numa manchete, há uma unanimidade no Brasil sobre como avaliar esses fatos? Eu creio que não", alerta.

Exemplos do vizinho e além

A advogada Veridiana Alimonti destaca o exemplo da Argentina, que conseguiu, inclusive, decisões favoráveis no tribunal diante de ofensivas de emissoras contra a regulação, principalmente do grupo Clarín. Um exemplo é a divisão do espectro, entre sistema estatal, público e privado. A Argentina dividiu em três, para que as concessões levem em consideração de forma igual esses três sistemas. Outro ponto importante foi estabelecer a criação, em relação à regulação de conteúdo, de uma figura chamada defensor do público, que seria quem recebe e dá andamento a denúncias em relação à programação e provoca também a discussão em relação a esta. Além de outros limites de concentração de propriedade, tanto nacionais quanto locais.

Na França, existem limites para que um mesmo grupo não tenha uma emissora de rádio, uma emissora de televisão e um jornal num mesmo município, por exemplo. A legislação americana, durante muito tempo, foi bastante restritiva também com relação à concentração de propriedade dos meios de comunicação. Na década de 1990, houve uma liberalização e o país passou a discutir alguns critérios, mas houve limites que proibiam, por exemplo, que uma empresa tivesse uma emissora de televisão no município e um jornal também, destaca Veridiana.

"As organizações ao redor do mundo estabelecem diferentes mecanismos de controle do poder econômico e de comunicação de grupos empresariais. A gente tem que se inspirar nisso para aprofundar a nossa democracia, e não ameaçá-la. A regulação econômica dos meios de comunicação aprofunda a democracia brasileira, ao trazer mais vozes, ao trabalhar melhor essas concessões, e não o contrário", conclui a advogada.

Fórum na Tunísia

A regulação dos meios de comunicação será um dos temas da Carta da Mídia Livre, principal documento do Fórum Mundial de Mídia Livre que acontece na Universidade El Manaer, em Túnis, capital da Tunísia, entre os dias 22 e 28 de março.

Bia Barbosa, coordenadora do Intervozes, falou durante o evento ao Portal EBC sobre a importância de que esta carta seja utilizada para reivindicar um novo marco regulatório para as comunicações no Brasil. "Nós estamos no meio da luta por uma nova legislação das comunicações. Essa reivindicação, sem dúvida, poderá aproveitar a força desse encontro internacional."

Liberdade de informação tem a ver com o cidadão, não com o dono do jornal

Para o italiano Roberto Savio, fundador e presidente emérito da Inter Press Service, agência internacional de jornalistas colaborativa, a regulação dos meios é fundamental para criar um sistema mais justo de informação, em que o cidadão seja parte do processo.

" Liberdade de informação tem a ver com o cidadão, não com o dono do jornal. Os donos dos meios falam da liberdade da informação para manterem a liberdade de serem donos do meio de informação", disse a EBC.


Jornal do Brasil


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