sexta-feira, 9 de maio de 2014

A Copa do Mundo é nossa


Christian Ingo Lenz Dunker.*


Quando era mais destemido e menos roliço quase fui jogador de futebol profissional. Jogava no gol e tinha algo assim como um “porte promissor”. Depois psicanalista, mudei de lado, da defesa para o desejo. Aposentada a esperança juvenil de glorioso futuro, não sem manter-me no solo maldito onde nem grama nasce, jogava recreativamente com antigos companheiros de concentração, preparadores físicos, atletas de médio, pequeno ou pequeníssimo reconhecimento. Dos velhos quase-jogadores ouvia um conselho sábio, que foi crescendo em importância com o tempo: no futebol, quando você se torna macaco velho, não torce mais para alguém ganhar ou perder, mas para ninguém se machucar.


Em pequena escala o futebol é um empreendimento muito brasileiro, que nasce da combinação entre escassez e contingência: depende de naquele time haver dois ou três laterais direitos disponíveis, e nenhum na esquerda, do técnico não ser pedófilo demais, do dono do time não ser tio do meia-armador, de você não machucar naquele jogo, ou estar suspenso quando vier olheiro, ou entrar no dia de mau humor do juiz ou do bandeirinha. Depende de você ser emprestado, ou não, para aquele time júnior no Japão e voltar na segunda divisão, no momento errado. Depende daquele empresário de jovens jogadores não resolver encostar você, porque você talvez seja bom demais para jogar no time A ou B. Ou seja, a constelação entre acaso, talento, corrupção e sorte sobrepuja em muito qualquer tipo de boa vontade, dedicação ou esforço dirigido, que ao mesmo tempo exige e tem por condição. Quem viu Linha de passe (Walter Sales e Daniela Thomas, 2008) ou Boleiros (Ugo Giorgetti, 1998) terá uma ideia do problema.


Uma vez que o futebol é essa combinação entre imponderáveis e excepcionalidades, essa “caixinha de surpresas”, ele se oferece facilmente para captar a identidade nacional. Lembremos que a famosa expressão “complexo de vira-latas”, forjada por Nelson Rodrigues para delinear o caráter nacional brasileiro, era uma tentativa de explicar o fracasso do Maracanã, em 1950. Não podíamos ganhar porque não éramos “forjados para ganhar”, não nos entendíamos como um povo vencedor, e a causa – nada mais racialista –era nossa origem impura, misturada, híbrida e confusa.


Se a primeira aconteceu como tragédia, a segunda, se vier, será como farsa. Ou seja, no vazio colocamos qualquer coisa, especialmente sonhos, ilusões e profecias auto-realizadoras. Quando ouço e vejo milhões, em ação e em operação, tenho este sentimento de distanciamento duplo, de que a única coisa real nesta conversa em torno da Copa do Mundo 2014 é a própria contradição que ela cria.


Há uma espécie de paralaxe no ar. Para Žižek a paralaxe é a própria estrutura da fantasia ideológica, pois qual o fenômeno físico homônimo, quando fechamos um olho, o mundo parece se deslocar para um lado. Se invertemos o olho que está fechado o mundo parece entrar em movimento para o lado oposto. Abrindo e fechando em movimento repetido parece que o mundo está em movimento. Mas não há movimento algum a não o do abrir e fechar de olhos do próprio sujeito que, não conseguindo reconhecer sua própria divisão, atribui-a ao mundo. Contudo, há algo que realmente acontece no movimento alternado de abrir e fechar os olhos. A escuridão momentânea dos dois olhos fechados, ou a lucidez dos dois olhos abertos, ainda que por um átimo, fazem precipitar desde a ilusão da paralaxe um pequeno fragmento de mundo real. E neste instante não conseguimos saber do que é feito esse real, pois ele se apresenta ou como mancha, nódoa e ponto obscuro, ou então como cegueira luminosa, vertigem e susto de fosfeno, que nos faz ver “estrelas”. É o que Lacan chama de objeto a, causa de desejo.


Se fechamos o olho direito, enxergamos tudo com o olhar “da esquerda”. Surge então diante de nós, escuro como a noite, o uso político da Copa do Mundo, que se conta aos 90 milhões de reais em ação de cada estádio superfaturado. E se a taça do mundo for nossa ela será uma espécie de cabo eleitoral espontâneo do continuísmo a sancionar o governo Dilma. A copa a serviço do consumismo, entra como um caso dos ressentidos que denunciam a crença idólatra no Natal. Aqui todos parecem recriminar um suposto sujeito ingênuo, que ainda acredita no “golpe” dos anos 1970, por meio do qual a ditadura teria substituído nosso técnico esquerdista João Saldanha, pelo falso ponta esquerda Zagalo, que jogava recuado – desde a copa de 1958 ajudando o meio de campo.


Na paralaxe de esquerda em caso de a Taça do Mundo é nossa, então estaria decretada uma nova era de alienação generalizada e pacificação compulsória, ao som do Fome-Zero: “com o brasileiro não há quem possa, eta esquadrão de ouro, é bom no samba, é bom no couro”. A hipótese de vitória nos faria esquecer os problemas do país. Ora, esta perspectiva une, misteriosamente, esquerda e direita, sob uma mesma teoria da transformação segundo a qual o sentido de realidade se produz ou se perde por uma espécie de contágio ou generalização de instantes de felicidade. A pessoa feliz transforma-se imediatamente em idiota. Certo, há um grão de verdade aqui. Quiçá derivado da evidência tosca de que quando amamos, a primeira vítima é a inteligência crítica. Disso não se conclui que o ódio nos dá a justa medida das coisas. Nosso fetichismo prático é mais complexo do que a teoria que joga no esquema quanto melhor, pior. Segundo esta teoria da transformação quanto mais sofrimento mais indignação, quanto maior for a indignação maior será o desejo de transformação.


Esta teoria de que a verdadeira mudança vem do sofrimento é uma teoria pré-psicanalítica, provavelmente inspirada no masoquismo judaico-cristão. Mais sofrimento não gera, necessariamente, mais mudança. É possível que gere mais ressentimento. Não queremos inventar uma nova forma de vida porque a antiga é cheia de sofrimento, mas porque o saber que nos faz suportar o sofrimento não funciona mais, ou então porque proliferam exceções (outros estão a sofrer muito menos que nós). A mudança vem quando suspeitamos que o saber que explica, interpreta e mantém este sofrimento como necessário, não depende mais da vontade divina, das leis naturais ou do destino cósmico, ou ainda de nosso destino de origem “vira-lata”. Ou seja, a transformação vem quando mudamos o critério ou o patamar de suportabilidade.


Passemos ao lado inverso da paralaxe. Se fecharmos o olho da esquerda, sobrante o olho da direita que tudo vê, assumimos a perspectiva dos que advogam que “vai ter copa, sim”. Na paralaxe de direita precisamos de menos pessimismo negro sobre o mundo e mais pessimismo branco sobre quem realmente somos: egoístas, interesseiros, corruptos e safados, “como todo mundo”. Os herdeiros hobbesianos do espírito nacional, livres empreendedores, fazem as contas dos benefícios gerados pela realização da Copa do Mundo em outros países. A luta de todos contra todos fará dos estádios, em desemprego futuro, verdadeiras colmeias de Mandeville. Para estes a Taça do Mundo é nossa porque sempre foi nossa, por direito divino do deus do futebol e de seus representantes terrenos. Quando Wagner Maugeri, Lauro Müller, Maugeri Sobrinho e Victor Dagô compuseram esta música para a nossa primeira vitória em copas do mundo, na Suécia em 1958, havia a regra da FIFA, de que o país que fosse três vezes campeão de forma seguida ou alternada, ficaria com a taça Jules Rimet para si, em definitivo. Ou seja, a taça do mundo era nossa… até 1962 no Chile (ganhamos de novo). Só em 1970 ela se tornou definitivamente nossa, data que funda a direita festiva no país. Nossa até ser roubada da sede da CBF, subsistindo até hoje apenas a cópia feita a mando de Pelé. Os ladrões derreteram a taça Jules Rimet original, para vender seu peso em ouro. Portanto, ao sucesso de 1958, “A taça do mundo é nossa”, deveríamos acrescentar “…por enquanto”.


Moral da paralaxe de direita: nossos ladrões representam o exato espírito nacional que colocará o Brasil na vanguarda do capitalismo internacional. Derreter o símbolo para ficar com a matéria bruta. Enquanto isso, dizemos que ela já é nossa, (mesmo que esteja sob nossa guarda só por quatro anos) e saudamos o 90 milhões em ação, prá frente Brasil, salve a seleção.


Ora, esta perspectiva também reúne direita e esquerda em uma mesma teoria da transformação, que neste caso joga no esquema: quanto pior melhor. E veja só, esta também é uma teoria pré-psicanalítica, neste caso oriunda do sadismo judaico-cristão. Para ela a verdadeira mudança só acontece quando paramos de desejar mudanças impossíveis. Reduzido ao mínimo sobreviver já é muito. A transformação que se pode esperar é a que vem dos mais fortes e esclarecidos. Que imponham sua lei aos demais, de preferência incluindo uma cláusula de monopólio da violência (aos que fazem as leis). Por isso a raça dos campeões faz toda diferença. Nessa teoria, a transformação também acontece por contágio, só que forçado e vindo de cima para baixo. Ser campeão não é apenas ser o melhor entre times que competem segundo regras comuns. Ser campeão é consagrar o princípio que divide o mundo entre winners e loosers, criando a partir de então as regras de transformação retrospectiva para explicar este estado de coisas.


Como diz meu amigo Vladimir Safatle, homenageando o velho Bento Prado, “sempre se é o irracionalista de alguém”. Sempre se é o ufanista de alguém, o nacionalista ingênuo que acredita que tudo vai melhorar, que basta nos unirmos e junto rezarmos o “para frente Brasil” – ou então “para trás Brasil”, tanto faz.


Ora, o objeto a, obsceno e impronunciável, porque sempre a espreita do gozo do Outro, chama-se justamente “nós”. Para uns será o “nós” que se opõe aos estrangeiros, que nos olham com desprezo sob a rubrica da ineficiência. Para outros será o “nós” das massas ignaras, que embaladas pela felicidade da vitória ou pela indignação da derrota poderão ser perigosamente manipuláveis. Assim como sempre se é o “irracionalista” de alguém, sempre estamos excluídos ou incluídos involuntariamente em algum destes “nós”. Depois que o samba virou Funk e que nosso exotismo estético virou carne de vaca só sobrou o futebol a dizer “nós” por nós. Mas parece que desta vez ele vai para o brejo das almas também. Quem não está com vergonha está com medo desta palavra que de repente se tornou perigosa demais. E aqui surge uma terceira teoria da transformação. Só poderemos criar alguma coisa de novo quando “nós” deixarmos de pensar que a mudança depende de um “nós” anterior ao próprio ato que a constitui.


Entre dizer que a seleção não me representa e dizer que a seleção me representa demasiadamente, fico com a tese de que ela cria um efeito “nós” que será lembrado como parte da história. Um momento de futuro, para o bem ou para o mal, como cicatriz na alma juvenil, feita de ilusões perdidas e sonhos reencontrados.


***

Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano, fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP, autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

Boitempo


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