quinta-feira, 1 de maio de 2014

Daniel Aarão Reis: Vivemos tempos revolucionários, de profundas mutações

Manifestação no Congresso 

Sibila Debate 64:  ( extrato)

É Comum Gente de Esquerda  e de Direita se encontrarem e manterem Laços Especiais.

Daniel Aarão Reis Filho é graduado e mestre em história pela Universite de Paris VII e doutor em história social pela USP. É professor titular de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense. Dedica-se atualmente a duas linhas principais de pesquisa: os intelectuais russos e as modernidades alternativas (séculos XIX e XX), visando as relações entre literatura e história, e a história das esquerdas no Brasil.

Sibila: Jacob Gorender enfatiza, segundo o historiador Carlos Fico, que, no pré-64, engendrou-se uma real “ameaça à classe dominante brasileira e ao imperialismo”: “O período 1960-1964 marca o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores brasileiros neste século [XX]. O auge da luta de classes, em que se pôs em xeque a estabilidade institucional da ordem burguesa sob os aspectos do direito de propriedade e da força coercitiva do Estado. Nos primeiros meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo caráter contrarrevolucionário preventivo”. Segundo Fico, “Gorender consolidou, em traços gerais, duas das principais linhas de força interpretativas sobre as razões do golpe: o papel determinante do estágio em que se encontrava o capitalismo brasileiro e o caráter preventivo da ação, tendo em vista reais ameaças revolucionárias provindas da esquerda”. O senhor concorda com essa visão do golpe? Ela não tem algo de irrealista? Havia, de fato, ameaças reais ao poder e ao status quo vindas da esquerda? A conjuntura externa (as grandes tensões da Guerra Fria) não foi uma lente que deformou as percepções políticas da época? Paradoxalmente, este não é o argumento central dos que justificam o golpe?


Reis: Penso que a avaliação de J. Gorender é acertada. A conjuntura entre 1961 e 1964 foi, sem dúvida, a mais quente da história republicana brasileira. O programa das reformas de base, caso implementado, viraria o país pelo avesso. A universalização do voto, incluindo os analfabetos, colocaria simplesmente a metade da população adulta, até então excluída, no jogo político. A reforma agrária faria desmoronar o poder do latifúndio no campo, onde ainda habitava quase a metade da população brasileira. A reforma das relações com o capital internacional minaria uma das bases mais importantes de sustentação do poder das classes dominantes. Por outro lado, cabe enfatizar que, pela primeira vez na história republicana, de forma organizada, lideranças populares começavam, de fato, a participar, e intensamente, da vida política. Tudo isto suscitou muito medo e não era um medo apenas inventado pela propaganda anticomunista, embora esta o potencializasse, sem dúvida, mas o medo tinha fundamentos reais. Outro aspecto levantado na pergunta também contribuiu para o acirramento das contradições – uma quadra especialmente crítica da Guerra Fria, com a vitória da Revolução Cubana, em 1959; a da Argélia, em 1962 e o avanço, em várias partes do mundo, de movimentos revolucionários armados, como no Vietnã, na África e na própria América Latina. A tese de que “houve exagero premeditado” por parte das elites no poder não se sustenta à luz das evidências que é possível observar na conjuntura mais quente de nossa história republicana.


Sibila: Gorender escreveu: “O núcleo burguês industrializante em 1964 e os setores vinculados ao capital estrangeiro perceberam os riscos dessas virtualidades das reformas de base e formularam a alternativa da ‘modernização conservadora’”. A “modernização conservadora” não foi uma criação do governo militar, mas é uma marca da história brasileira, incluindo a Proclamação da República pelo exército, a República Velha, o governo Vargas, o governo JK. Hoje, o Brasil de 2014 tem um perfil agrário e exportador, sem uma burguesia industrial fortalecida. Ao mesmo tempo, desde os governos FHC e Lula e incluindo o governo Dilma, há uma proclamada ascensão econômica das classes mais baixas, mas restrita ao consumo, e excluindo todos os fatores da cidadania moderna, a começar da educação. Esta seria uma das caras reatualizadas da modernização conservadora à brasileira em geral, e de 1964 em particular?


Reis: A ressalva que faço ao texto de Gorender, e que também faço ao excelente trabalho de René Dreifuss, é derrapar para uma concepção em que a história parece fruto de decisões de “núcleos superconscientes”, como se fossem “partidos bolcheviques de direita”, que guiam e manipulam os acontecimentos históricos. A “frentona” que apoiou o golpe era muito heterogênea e diversificada, envolvia um conjunto de atores sociais e políticos, aparecendo nesse quadro o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) como um fator, articulado e organizado, sem dúvida, mas que foi obrigado a negociar não apenas com outros elementos da “frentona” como também com adversários derrotados, mas não vencidos. A modernização conservadora e autoritária de que foi fator e expressão a ditadura envolveu um complexo de atores e segmentos sociais, não podendo ser apresentada, e avaliada, apenas como fruto de “núcleos superconscientes”.

Sibila: Alguns consideram que sem a guerrilha de 1969 a 1975 (pós AI-5), incluindo a do Araguaia, não haveria redemocratização formal do país. Sem as torturas e outros fatores (governo Jimmy Carter), a presença dos militares se prolongaria. O senhor concorda com esta tese? Ela não simplifica tudo em uma variável, talvez hipertrofiada e inteiramente externa ao regime, omitindo, por exemplo, os conhecidos embates dentro da cúpula militar, justamente quanto à questão da necessidade da redemocratização? Há algum documento estratégico do governo militar que contemple a perspectiva de uma ditadura indefinida?


Reis: É completamente fantasiosa a ideia de que as organizações guerrilheiras contribuíram para a redemocratização do país. Não há nenhuma evidência neste sentido nos numerosos documentos escritos pelas organizações revolucionárias. Depois da destruição dessas organizações, contudo, numerosos ex-militantes das mesmas, mudando de concepções, participaram ativamente das lutas democráticas que contribuiriam para a instauração do Estado de Direito democrático no Brasil. Outro aspecto a merecer ênfase diz respeito à ampla frente que protagonizou a restauração democrática. Dela participaram numerosos atores – sociais e políticos – entre os quais tiveram papel de relevo políticos ligados à ditadura e que migraram para as oposições. Feita esta ressalva, é inegável o papel também protagônico desempenhado pelos grandes movimentos sociais a partir de 1978. Surpreenderam a todos pelo seu dinamismo e embaralharam completamente as cartas laboriosamente construídas por Geisel e Golbery, que imaginavam um processo muito mais controlado do que, afinal, acabou ocorrendo.


Sibila: O que significa a presença de José Sarney da UDN até hoje, passando pelo golpe de 1964? Com ele liderando a transição, não se fez uma Comissão da Verdade. Como o senhor explica uma transição para a democracia sem uma Comissão da Verdade e sem a punição dos militares e dos “excessos” (formalmente crimes) dos aparelhos de esquerda? O assassinato, por exemplo, de Henning Boilesen, foi excessivo ou justo? Pode uma execução extrajudicial ser justa? Se o for, quando praticada pela esquerda, não o será também quando praticada pelo aparelho de Estado?

Reis: A trajetória de José Sarney é muito simbólica e expressiva, a meu ver, podendo ser configurada como emblemática de muitos outros percursos. Antes do golpe, o homem tinha posições progressistas, de esquerda, participando da chamada “Bossa Nova” da UDN, um agrupamento progressista no seio desse partido liberal conservador. Depois do golpe, bandeou-se para a ditadura, tornando-se um de seus grandes líderes civis. Mais tarde, já encerrado o período ditatorial, nos anos 1980, mudou, mais uma vez, de lado, articulando-se com outros líderes de direita no chamado Partido da Frente Liberal, fator decisivo para a vitória de Tancredo Neves e dele mesmo nas eleições indiretas de 1985. Ingressou no PMDB por exigência legal, mas era um homem do PFL. Mais tarde, governando o país, teve altos (Plano Cruzado) e baixos, saindo apedrejado por quase todos. O que não o impediu, já no século XXI, de se tornar aliado de Lula, merecendo elogios do mesmo por ocasião dos festejos do 25° aniversário da Constituição de 1988. Prepara-se agora para morrer como um verdadeiro varão de Plutarco. Uma trajetória desse tipo merece uma biografia de respeito. A inexistência de uma Comissão da Verdade não se deve a Sarney, mas às características de conjunto do processo brasileiro de transição, em que foi preservada – até na Constituição de 1988 – a tutela dos militares sobre a República. É essa tutela, afinal, que tem inviabilizado o trabalho da atual Comissão da Verdade. Quanto ao empresário Henning Boilensen, foi justiçado por um grupo de revolucionários. Além de amealhar recursos financeiros para os órgãos repressivos, encarregados da tortura como política de Estado, acompanhava as torturas e participava pessoalmente delas. Mereceu o destino que teve.



Sibila: A fragilidade do poder judiciário, do Ministério Público e da polícia decorre em parte da impunidade dos agentes de 1964?


Reis: Não vejo fragilidade no poder judiciário e no Ministério Público, instituições que operam com autonomia e força inéditas na história republicana. Permanecem, sim, amarrados por pesada burocracia e legislações elitistas, elaboradas deliberadamente para proteger “os de cima”. As causas disso, contudo, são mais profundas, e mereceriam uma outra entrevista. Quanto à polícias, especialmente a militar, trata-se de um aparato inteiramente incompatível com o regime democrático. Não sou otimista em relação à possibilidade de reformar as PMs.


Sibila: Considerando as teorias da Nova História e do culturalismo, gostaria que o senhor falasse um pouco de fatos como Sergio Paranhos Fleury ter sido guarda-costas de Roberto Carlos de 1965 a 1968 e do grupo da Jovem Guarda – criada pela agência de publicidade de Carlito Maia, irmão de Dulce Maia (da ALN). Roberto Carlos que elogiou em 1973 o general Pinochet, chamando-o de “señor presidente, Don Augusto Pinochet”. Houve colaboração de artistas com o regime militar em geral e com a OBAN e o DOI-CODI em particular?


Reis: Na vulgada da “resistência”, artistas aparecem, com razão, citados por seu desassombro e coragem. No entanto, houve muitos artistas que colaboraram abertamente com a ditadura. Outros ainda não foram contra nem a favor, muito pelo contrário. Roberto Carlos e a Jovem Guarda faziam parte deste grupo “não estou nem aí”, mas, como diz a pergunta, não hesitaram, em determinados momentos, em colaborar com a ditadura e com os ditadores.


Sibila: Com o senhor avalia o fato de Fleury ter tido como amante, de 1977 a 1979, Leonora Rodrigues, irmã de Raimundo Pereira (jornais Opinião e Movimento)? Essa promiscuidade percorre até hoje a sociedade e a cultura brasileiras?


Reis: A sociedade brasileira é ainda hoje marcadamente “aristocrática”, no sentido de que suas elites sociais e políticas dispõem de privilégios e regalias especiais. É comum nesses espaços rarefeitos gente de esquerda e de direita se encontrarem e manterem laços especiais.


Sibila: Paris e Londres eram as referências gerais. Uma parte dos intelectuais seguia Paris (campo socialista) e outra, Londres (“pós-política”, experimentando música, sexo livre e marijuana, marcada pela contracultura, “subversiva” aos olhos dos militares). Parece que, ao longo do tempo, a linha londrina prevaleceu na cultura brasileira. O senhor concorda? Isso tem relação com 1964?


Reis: A pergunta está muito eurocêntrica. Para mim, na estruturação da cultura “udigrudi” pesou mais a influência estadunidense: beatniks e hippies. É preciso, no entanto, deixar claro que as esquerdas organizadas sempre formularam muitas reservas – põe reserva nisso – à contracultura, considerada alienada e mesmo reacionária. Foi só muito mais tarde que a contracultura foi resgatada pela memória social como uma vertente da “resistência”, mas isto, sintomaticamente, passou pela dissolução das organizações de esquerda mais importantes.


Sibila: Como o senhor vê o rebaixamento cultural brasileiro de hoje? Ele tem causas em 1964? Ou com a civilização global do espetáculo, na qual o entretenimento substituiu a cultura, e a arte se tornou uma arte simplificada e sem referências que perturbem sua recepção?


Reis: Esse discurso sobre o “rebaixamento” cultural brasileiro me parece injustificado e me cheira à nostalgia dos “velhos e bons tempos”. Vejo uma floração de autores e obras como nunca aconteceu em nossa sociedade.


Sibila: Aprofundando a questão anterior, por que parece não haver mais condições para uma arte crítica no Brasil? Trata-se do fim das utopias, da globalização, do consumismo, do narcisismo “Facebook”, em suma, do “espírito da época”, incluindo certa “demissão da crítica”, em grande parte mercadologizada, como, aliás, a própria mídia, ou o modelo social e econômico brasileiro é parte necessária da resposta, de que o atrasado modelo “agrário”, isto é, agroexportador, é exemplo e talvez parte implicada?


Reis: Não compartilho o pessimismo embutido na questão. Vivemos tempos revolucionários, de profundas mutações. Como historiador, vejo analogias possíveis entre os tempos que vivemos e os que existiram em fins do século XIX. Quando essas mutações se anunciam – e se realizam – aparecem sempre os discursos “de fim de mundo”. Mas o mundo não está acabando. O que está acabando é uma certa ordem de coisas. Vivemos embates históricos, fascinantes, mas já sem a muleta das grandes – e falsas – visões totalizantes. Para mim, é muito interessante. Veremos no que vai dar. Quem viver, verá.


Sibila: Por que não há políticas públicas para a cultura no Brasil? Por que a cultura é tratada como evento? Por que tantos eventos culturais vazios no Brasil?


Reis: Há políticas públicas para a cultura, o problema é que são distorcidas e não controladas pelo distinto público. Quando Roberto Carlos se apropria dos incentivos culturais, dá pra ver como o jogo está sendo jogado. Penso que esse modelo tende a ruir. Veremos. Vai depender, como sempre, da vontade das gentes.


Sibila: João Cabral, em duas conferências famosas, de 1952 e 1954, já discorria sobre o problema do fatal distanciamento moderno do público de poesia. As coisas pioraram ou melhoraram, paradoxalmente, durante o regime militar? Alguns poemas de A rosa do povo, de Drummond (1944), ou “A rosa de Hiroshima” de Vinicius (1954), e livros como Poema sujo de Gullar, tiveram então certa popularidade, pela temática politizada, e parecem ter conseguido manter a poesia dentro de um contexto de certa efervescência político-cultural reativa, que incluía o teatro (Arena, Opinião etc.), a música popular e mesmo a prosa, como nas coletâneas de contos “brutalistas” de Rubem Fonseca nos anos 1970. Se houve melhora ou piora em relação à situação descrita por Cabral nos anos 1950, ou melhora pontual e piora geral, estas se amenizaram ou se acentuaram com a redemocratização à brasileira?


Reis: Penso que vivemos uma época estimulante e fascinante, de emergência maciça de novos talentos. Eles transbordam pelos poros da sociedade num fenômeno inédito. Essas poesias a que a pergunta se refere eram consumidas por um pequeníssimo núcleo de elite… não dá para pensar nelas com nostalgia. Tiveram seu papel e seu valor, sem dúvida, mas pertenciam a uma época que se viveu…Quanto à poesia, está mais viva do que nunca, basta ver a vendagem das poesias de Leminski.


Sibila: À época do golpe militar, o mercado editorial brasileiro era bastante apequenado. Os números de novos títulos, de traduções, de leitores etc., eram mínimos, incluindo a esfera acadêmica. Além disso, serviam a uma pequena intelligentsia de escritores, críticos, intelectuais etc. Não havia nem um público de massa nem um público médio de literatura “média”, de mercado. Hoje este público está em formação e, segundo os otimistas, em ascensão, mas em detrimento daquela intelligentsia, hoje minguada em sua influência e mesmo em sua existência, substituída pelos algo fantasmáticos “formadores de opinião”. Concorda com esta avaliação, que parece seguir certo modelo brasileiro de ganhar por perdas?


Reis: Não há ganhos sem perdas. Nem perdas sem ganhos. Como está na própria pergunta, as “glórias” referidas pertenciam a um mundinho muito reduzido, pequeno como era Ipanema nos good old times dos anos 1960. Acabou e foi bom ter acabado. Agora, o que vai surgir ainda não sabemos direito. Veremos.


Sibila: A literatura brasileira, hoje, cresce por diluição, em mais de um sentido, em meio a um mercado polimorfo e à convivência com a internet, seja no caso da publicação em e-books ou da reedição eletrônica e dos downloads, seja no caso de criações originais feitas na rede e para a rede, que podem ou não vir a ser publicadas em livro. Ao mesmo tempo, o mercado editorial em si também cresce, ainda que manco, pois centrado e concentrado em modismos mercadológico-literários. Mesmo a poesia encontra, apesar de muito pontualmente, espaços passageiros de grande presença, de é exemplo a recente publicação da obra poética completa de Paulo Leminski, que se tornou um best-seller. Como pode, se pode, a literatura contemporânea voltar a ter alguma influência cultural? Neste caso, o período do regime militar ficará na história como seu último momento de presença forte, apesar de tudo?


Reis: Só pode ser piada dizer que no regime militar a literatura teve grande influência. Há gente que olha para o próprio umbigo e vê ali o mundo. A ampliação da produção de livros e o aumento do leitorado criaram novas dimensões. Ainda é cedo para fazer um juízo a respeito. Mas é estimulante ver que os autores do novo Cinco vezes favela foram jovens que nasceram e cresceram em favelas.


Sibila: Se as mentalidades são mesmo prisões de longa duração, podemos afirmar que há uma característica histórica permanente na mentalidade brasileira? Qual?


Reis: Trabalho com a noção de cultura política. As culturas políticas não são prisões, mas conjuntos de referências, sempre cambiantes, adaptando-se, metamorfoseando-se, segundo as circunstâncias e as vontades das gentes. Não acredito em determinismos. Mas na vida, sempre sujeita a imponderáveis. E gosto da frase de E. Morin: às vezes, é o improvável que acontece.


Sibila.com.br

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