quinta-feira, 13 de março de 2014

Outros cantos; Maria Valéria Rezende


Para quem quiser saber como começa meu próximo romance, ainda em fase de acabamento, vai aqui o primeiro capitulinho, publicado no novo número do jornal Cândido, da BPP do Paraná. Mas quem não quiser ler, não deixe de abrir só pra ver a lindíssima ilustração da Carolina Vigna!

Maria Valéria Rezende 

Outros cantos

Capítulo 1

“Não eram muitos os que passavam dos trinta/ A velhice era privilégio das pedras e das árvores/ A infância durava tanto quanto a dos filhotes dos lobos// (...)// De todo modo, não contavam os anos/ Contavam as redes, os tachos, os ranchos, os machados / O tempo, tão generoso para qualquer estrela no céu / estendia-lhes a mão quase vazia/ e a retirava rápido, como se tivesse pena (...)//O bem e o mal/ deles sabiam pouco, porém tudo/ quando o mal triunfa, o bem se esconde/ quando o bem aparece, o mal fica de tocaia (...)/ Por isso, se há alegria é com um misto de aflição/ se há desespero, nunca é sem um fio de esperança/ A vida, mesmo se longa, sempre será curta/ Curta demais para se acrescentar algo.” Wislawa Szymborska


Eu fazia trinta anos no dia em que me meti pela primeira vez no sertão. Ainda não se havia espalhado por toda a terra a ilusão de poder-se fraudar o tempo e afastar indefinidamente o envelhecimento e a morte com técnicas cirúrgicas e calistênicas, fórmulas químicas, discursos Carolina Vignade auto-persuasão, mantras, injeções, lágrimas e incenso. Então, só era possível fazê-lo tornando-nos heróis, mártires, mitos, símbolos. Apostava-se a vida no que acreditávamos ser maior que a nossa própria vida. Encher de sentido o tempo era, então, mais urgente porque tão passageiro, urgência de marcar o mundo com nossa existência, mesmo que arriscando-nos a torná-la ainda mais breve. Ultrapassar os trinta anos era atravessar o portal da juventude para a idade adulta. Era, então, o exato meio da vida.


Olho de novo o perfil do homem sentado do outro lado do estreito corredor deste ônibus em que, hoje, cruzo mais uma vez um sertão, qualquer sertão. Vi-o pela janela quando irrompeu e acenou à margem da estrada, vindo de nenhum caminho, nenhuma habitação humana, emergindo do deserto, emaranhado compacto de garranchos e cactos. O ônibus parou arquejando e eu adivinhei que ele vinha sentar-se ao meu lado, apesar de tantas cadeiras vazias. Ele veio, grande, maciço, cheirando a couro curtido, suor e tabaco... O cheiro flui da minha memória, decerto, porque este ao meu lado veste-se como um cowboy de rodeio e cheira a água de colônia barata. Sentou-se, as costas retas, as mãos pousadas sobre os joelhos, segurando o chapéu de abas largas, os olhos fixos perfurando o espaldar da poltrona dianteira e assim ficou até agora. Difícil deixar de olhá-lo, ainda mais quando sua figura se transforma, a contra-luz, em silhueta de perneira, gibão e chapéu de couro, estátua encourada revolvendo-me as lembranças. Agora que o sol se meteu por detrás de nuvens esfarrapadas, logo acima do horizonte, tingindo o mundo, o vaqueiro destaca-se, negro como xilogravura contra o fundo avermelhado, e percebo em mim uma sensação de suspensão e expectativa: desejo e espero que ele lance, enfim, o seu aboio. Há trinta e cinco anos carrego a saudade dessa imagem e desse canto em algum desvão da alma que agora se ilumina.


Os faróis deste carro velho são tão fracos que não mostram nada do caminho, nada me distrai das imagens que voltam da minha primeira tarde naquele outro sertão. Deixo divagar a memória enquanto todo o resto, o cowboy, o ônibus, a caatinga, a estrada, mergulha na escuridão.


Vejo-me outra vez jovem ainda, sentada sobre o tronco de um coqueiro decepado e deitado em frente à casa que me cabia, naquele povoado cujo nome explicava a razão de sua existência, tão longe de tudo: Olho d’Água, como tantos outros mínimos oásis espalhados pela vastidão das terras áridas. Eu me escorava na parede caiada, havia pouco abandonada pelo sol, que dava às minhas costas o único alívio possível contra o calor que me abateu desde a manhã, bem cedo, quando apeei do caminhão desmantelado que me levou àquele exílio.


Talvez seja essa lembrança que me faz sentir agora um desconforto maior e uma necessidade de acomodar melhor minhas costas. Luto com a alavanca que faria reclinar-se o encosto da poltrona, sem conseguir movê-la, emperrada. Insisto e meus esforços fazem mexer-se, pela primeira vez, o vaqueiro no assento vizinho. Ele se inclina sobre o corredor e, com extrema facilidade, levanta a alavanca e empurra o espaldar para trás. Agradeço, ele apenas acena com a cabeça e volta à sua posição de estátua, petrificado como eu estivera no calor daquela minha primeira tarde sertaneja.


Naquele remoto entardecer, depois de um dia inteiro prostrada na rede, exausta da longa viagem, eu não era capaz de mais nada, senão de arriscar- me até à porta da casa e olhar vagamente, através de um filtro líquido e salgado que ameaçava desfazer-se e escorrer pelo papel seco e quebradiço que substituíra minha pele, as poucas casas brancas, de janelas e portas fechadas, agarradas umas às outras, mortas de medo do imenso e árido espaço à sua volta. Entre elas, a rua larga de areia branca e salgada, mais salina que sertão, esparsas algarobas quase transparentes insistindo em dizer-se verdes, naquele cenário branco e cinzento que eu quase já não podia crer que ainda haveria de ser mar. As esperanças que eu trouxera pareciam resistir menos do que aquelas árvores esquálidas, não conseguiam durar nem um dia inteiro diante do vazio daquele lugar.


As esperanças que eu levava naquela viagem eram muito maiores e mais curtas dos que as que agora me fizeram embarcar neste ônibus. Foi para falar de esperanças que me chamaram de novo ao sertão e vou pensando que as minhas mudaram e se tornaram muito mais modestas e pacientes do que antes, talvez envelhecidas como eu. Começaram a mudar naquele dia em que, pela primeira vez, me meti nessa paisagem seca e espinhosa. Carolina Vigna**********


No cenário que se descortinava da frente da casa, podia-se ver o silêncio sólido do fim de tarde de um domingo num mundo sem nada, ninguém, mundo sem criador, parecia. Só eu estava lá, mergulhada na ausência, incrustada e imobilizada na quentura espessa, como um fóssil na pedra. Teria chegado ao fim do mundo, onde tudo para, não há mais lugar para lutas? A razão nada me dizia e meu corpo entregava-se à imobilidade, uma quase desistência de qualquer mudança, que de dentro de mim não vinha mais nenhum esboço de movimento. Já me via naufragando em lágrimas e na decepção de nada encontrar ao fim de tão longa e arriscada viagem, não fosse, de repente, a irrupção de um remoto canto, outra voz, inteiramente outra, mas que eu reconhecia, atravessando o susto, voz humana. Ôôôôôôôôô êêêêêêê ôôôôôôôôôôôô. Pareceu que era aquela voz que fazia uma tinta encarnada surgir do chão, no horizonte, e elevar-se, encher o céu e chegar onde eu estava, até então, sozinha e tornada em mineral, tingindo-me e tudo ao meu redor.


Alguém, no assento logo atrás do meu, ligou um rádio e me obriga a ouvir fragmentos de sermões evangélicos, de bandas funk, de anúncios comerciais e finalmente se resolve por um programa de canções melosas, pontuadas por gritos de locutor de rodeio, “seguuuuuura, peão”! O cowboy a meu lado mexe-se de novo, talvez animado por suas próprias esperanças, ganhar uma moto ou um carro na próxima vaquejada? Será que ainda sabe aboiar? O rádio começa e falhar e já não consegue sintonizar mais nenhuma estação. Sinto-me aliviada e volto às minhas lembranças daquela tarde perdida no passado.


O primeiro canto que ouvi naquele anoitecer vinha de tão longe!, era difícil saber se me chegava pelos ares dali ou se memória e nostalgia me enganavam, trazendo de volta o muezim argelino que, havia apenas uns poucos meses, da alta torre de El Ateuf, me despertava e me fazia correr ao muxarabiê de meu quarto, mesmo ao pé da almádena, para beber a primeira luz e a primeira voz do dia inundando o vale do Mzab. Não, o almuadém pertencia a outro tempo e a outro deserto, já mais longe ainda, e dele eu sabia da existência antes de ouvi-lo pela primeira vez. Eu havia escolhido voltar à minha terra, pensava, e ela me respondia com uma estranheza tão maior que todas as outras terras que eu havia percorrido.


À primeira voz que percebi, ao cair do sol, respondeu outra, e outra mais, chegando-me de todos os quadrantes, como se descessem do almocântara, em ondas sucessivas, cada vez mais fortes. De quem, esse canto? De quem, se não vejo senão a estrada vazia apagando-se à medida que escurece o vermelho do sol posto? De quem? De minha imaginação confusa pelo calor, a secura, a estranheza desse desterro? Então eu os vi, um a um, silhuetas recortadas contra o céu, bem à minha frente, como figuras de folheto de cordel, eles, seus cavalos, suas reses, seu coro de aboios acompanhado pelo badalar dos cincerros, movendo-se majestosamente em suas rústicas panóplias, a beleza feita sombra e som. Ôôôôôôôôô boi êêêêêêê booooooi ôôôôôôôôôôôô.


Que fácil é, hoje, assim envolta pela noite da caatinga e pelo ruído monótono do ônibus rodando sobre asfalto, voltar àquele dia, àquela outra viagem, àquele povoado no fim dos caminhos, ouvir por dentro o canto dos aboiadores, imaginar-me ali, esperar que o vento varra o calor do dia, que a lua suba do horizonte e, aproveitando o pouco luar que consegue meter-se por entre as frestas do telhado, beber dois copos d’água fresca, quase esvaziando a quartinha que contém minha ração de líquido potável para a noite, tateando, encontrar a porta do quarto, os ganchos de madeira nas paredes, armar a rede e deixar-me levar por ela, sem saber ao certo se aqui começa ou se acaba o sonho. Como se fosse hoje.


Nesta viagem não quero dormir como os outros que já ouço ressonar. Prefiro rever na imaginação as descobertas do meu primeiro amanhecer em Olho d’Água, em que acordei ouvindo, primeiro vagamente, em seguida mais nítida, à medida que o sono se dissipava, uma algaravia meio humana meio bando de passarinhos na qual, aos poucos, distingui, Mariiiia, Mariiiia. Demorei a reconhecer-me no nome chamado. Custou-me um enorme esforço levantar-me da rede, vestir meu cafetã, rasgar um caminho no colchão de calor que me separava da porta para a rua, abri-la que mugia como um novilho e encontrar os faróis dos olhos nas caras escuras, recriadas do barro feito de poeira e suor. Um bando de meninos me espreitava. Nos peitos, o teclado perfeito das costelas expostas, nas costas, saliências pontiagudas, duros cotos de asas cortadas antes mesmo de que eles vissem a luz por primeira vez. Nus vieram ao mundo e nele permaneciam, quase nus e inocentes, não por incapazes de fazer o mal, mas por ignorantes do mal que lhes podia ser feito. Riam à minha volta, com a alegria de quem descobre pela primeira vez o hipopótamo no zoológico. Eu sabia como eles se sentiam, porque também tinha rido assim, bobamente, quando me deparei, havia pouco tempo ainda, com meu primeiro camelo solto, bamboleando livre num palmeiral da Argélia e chegando cada vez mais perto de mim.


Carolina VignaA estrada por onde vou hoje passará bem perto daquele lugar que talvez ainda se chame Olho d’Água e abrigue um povo mais livre, junto a cada casa uma cisterna, como as que vi espalhadas ao longo deste trajeto antes que escurecesse, novinhas, brancas, na forma de um peito materno, recebendo a água das biqueiras do telhado, no inverno, dando de beber aos filhos no verão. Talvez. Mas pode ser que a estrada tenha sido a rota de fuga para todos eles e que já não estejam lá os homens que, ainda meninos, me saudavam risonhos e me chamavam Maria.


Quando me chamaram assim pela primeira vez e respondi sim... bom dia, cada um deles pôs-se a repetir bom dia, Maria e, rindo, encolhiam-se por detrás dos outros, assustado com seu próprio atrevimento. Dei-me conta, então, de que talvez houvessem passado muitas gerações sem que chegasse um estranho para viver ali, naquele lugar escondido por onde ninguém passava, onde se acabava o caminho e era na direção contrária que corria o rio da vida migrante. Lá não se costumava chegar, de lá só se ia embora.


O motorista deste ônibus acende as luzes, pára à beira da estrada e deixa entrar um fiscal qualquer. Custo a adaptar a vista que descansava no escuro enquanto outros olhos imaginários viam os meninos de Olho d’Água. Mas o que me diz o fiscal, lugar comum que me canso de ouvir em toda parte, lança-me de novo ao passado: “Já tem a passagem, Dona Maria?” Dou-lhe o bilhete já de olhos outra vez fechados, ouvindo outras vozes.


Maria, Maria, Maria, iam-me nomeando, eu reconhecendo-me, bom dia, somente Maria, o nome que certamente me pertencia, mas que até então tinha ouvido apenas na chamada da escola ou na voz de minha mãe quando se enfadava, o nome que declarei ao chegar, nem sei mais a quem, para servir-me como senha, fazer-me uma entre todas as outras Marias do lugar, onde eu devia esconder-me, tornar-me como um peixe dentro d’água, preparar o terreno para os que viriam depois de mim. Olhávamo-nos curiosos, aquelas crianças e eu, não sabia mais o que lhes dizer, nem eles, intimidados eles e eu, e recomeçavam: bom dia, Maria, um a um, até que o constrangimento se desfez em riso e eles saíram em correria pela rua branca.


Numa das paradas deste ônibus vi entrar uma mulher com dois meninos, vestidos em suas calças jeans, seus tênis e camisetas com uma besteira qualquer escrita em inglês e figuras de desenhos animados japoneses. Suas caras não enganam, são sertanejos como eram aqueles, mas já não têm a barriga inchada, a pele encardida e arranhada como aqueles de há trinta e cinco anos atrás. Minha razão me diz que estes de agora vivem melhor e devo alegrar-me por isso, mas meu coração já não se enternece tanto como daquela vez, diante daqueles que eu acreditava que precisavam de mim.


Os meninos daquele outro tempo, outro sertão, correndo como flechas, dirigiram meu olhar para uma cena que era pura surpresa. O vermelho do céu da véspera, última cor que tocara meus olhos, antes da treva da noite e do branco incandescente do sol de verão sertanejo que quase me cegava naquela manhã, dividia-se agora em feixes de inúmeras cores, cortando o espaço entre casas e algarobas. O que pode ser isto?, como vieram parar aqui as cores da tinturaria que me encantava em Ghardaïa, os matizes dos artesãos mozabitas preparando as lãs para tecer seus tapetes ancestrais?, como chegou aqui o colorido das vestimentas das Guadalupes do deserto de Sonora? Tive de fechar os olhos e tentar reorganizar as idéias. Por que invento agora ilusões para convencer- me de que permaneci num daqueles outros exílios que me ofereceram e não reconheço que estou neste lugar, remoto e descorado, que eu escolhi como meu próprio deserto? Eu me perguntava, confusa. Quando reabri os olhos, tudo ainda estava lá.

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Maria Valéria Rezende nasceu em 1942, em Santos (SP), onde morou até os 18 anos. Em 1965 entrou para a Congregação de Nossa Senhora. Sempre se dedicou à educação popular, primeiro na periferia de São Paulo. Estreou na ficção em 2001, com o livro Vasto mundo. Depois, escreveu o romance O voo da guará vermelha, publicado também na França, Espanha e Portugal, os contos de Modo de apanhar pássaros à mão e vários livros infantis e juvenis com os quais ganhou dois Jabutis. Lança em abril de 2014 o romance Quarenta dias, pela Alfaguara. Outros cantos, que o Cândido publica o primeiro capítulo com exclusividade, é um romance que autora deve finalizar ainda neste semestre e que foi contemplado com patrocínio da Petrobras.

CÂNDIDO - Jornal da Biblioteca Pública do Paraná
Candido.bpp.pr


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