sábado, 8 de março de 2014

Sobre como o ensino superior deve ser


Chomsky: Sobre a precarização do trabalho e da educação na universidade

Antes de tudo, devemos deixar de lado qualquer ideia de que houve algo como uma “idade de ouro”. As coisas eram diferentes e, em certo sentido, melhores no passado, mas longe de serem perfeitas. As universidades tradicionais eram extremamente hierarquizadas, com muito pouca participação democrática na tomada de decisões. Uma parte do ativismo dos anos 1960 queria justamente tentar democratizar as universidades, incluindo, por exemplo, representantes dos estudantes nas comissões do corpo docente. Esses esforços tiveram algum grau de sucesso. A maioria das universidades tem algum grau de participação dos estudantes nas decisões da instituição. Penso que deveríamos nos mover nesta direção: uma instituição democrática, onde as pessoas envolvidas (professores, alunos e funcionários) participam na definição das políticas da instituição e de como elas são executadas. E o mesmo deveria valer para uma fábrica.

Estas não são ideias radicais, devo dizer. Elas vêm diretamente da tradição do liberalismo clássico. Se lermos, por exemplo, John Stuart Mill, uma figura importante dessa tradição, veremos que ele concordava com a ideia de que os locais de trabalho deveriam ser administrados pelas pessoas que trabalham neles. Isso seria sinônimo de liberdade e democracia (ver, por exemplo, de John Stuart Mill, Princípios de Economia Política, livro 4, cap.7)

Podemos encontrar essas mesmas ideias nos Estados Unidos. Tomemos o caso dos Cavaleiros do Trabalho (Knights of Labor, primeira organização trabalhista nacional importante da história dos EUA, fundada em 1869 - NT). Um de seus objetivos declarados era “estabelecer instituições cooperativas, que tenderão a substituir o sistema de salários com a introdução de um sistema industrial cooperativado”. Ou ainda em alguém como John Dewey, filósofo “mainstream”do século 20, que defendeu não só uma educação voltada a desenvolver a independência criativa nas escolas, mas também o controle das indústrias pelos trabalhadores, o que ele chamou de “democracia industrial”.

Para Dewey, enquanto as instituições cruciais da sociedade (como produção, comércio, transporte e mídia) não estiverem sob o controle democrático, então a “política (será) a sombra projetada sobre a sociedade pelos grandes negócios” (“A Necessidade de um novo partido”, 1931). Essa ideia quase elementar, que tem raízes profundas na história dos Estados Unidos e no liberalismo clássico, deveria ser uma espécie de segunda natureza para as pessoas que trabalham e ser aplicada igualmente para as universidades.

Há algumas decisões em uma universidade onde não é o caso de ter (transparência democrática) porque, por exemplo, é preciso preservar a privacidade do aluno. Existem vários tipos de questões sensíveis, mas na maioria da atividade normal da universidade não há razão para a democracia direta não ser considerada legítima e útil. No meu departamento, por exemplo, por 40 anos tivemos representantes dos estudantes participando de reuniões do departamento.

"Governança compartilhada" e controle dos trabalhadores

A universidade é, provavelmente, a instituição em nossa sociedade que está mais próxima da ideia de um controle democrático dos trabalhadores. Dentro de um departamento, por exemplo, é normal que um professor possa determinar uma parte substancial de como será seu trabalho: o que vai ensinar, quando, como deve ser o currículo. A maioria das decisões sobre o trabalho real do departamento passa pelos professores. Há, é claro, um nível superior de questões que não fica sob seu controle. Pode-se indicar alguém para lecionar, digamos, e essa recomendação pode ser rejeitada pelos reitores ou administradores. Isso não acontece com muita frequência, mas pode acontecer. E isso sempre tem a ver com questões mais estruturais que, embora sempre tenham existido, representavam um problema menor quando os professores participam da administração.

Sob sistemas representativos, você tem que ter alguém fazendo o trabalho administrativo, mas esses mandatos devem ser revogáveis em algum momento. Isso ocorre cada vez menos. Existem cada vez mais administradores profissionais, em vários níveis, tomando decisões cada vez mais distantes do controle do corpo docente. Eu mencionei antes o livro “The Fall of the Faculty”, de Benjamin Ginsberg, que entra em muitos detalhes sobre como isso funciona em universidades como John’s Hopkins, Cornell e algumas outras.

Enquanto isso, o corpo docente se vê cada vez mais reduzido à categoria de trabalhadores temporários que têm a garantia de uma existência precária, sem perspectiva de evoluir na carreira. Eu tenho conhecidos que são efetivamente professores permanentes, mas eles não têm esse status na prática, tendo de se aplicar a cada ano de modo a serem nomeados novamente. Essas coisas não deveriam acontecer. E a situação dos auxiliares foi institucionalizada: eles não fazem parte do corpo de tomada de decisões e não tem segurança no emprego, o que só amplia o problema. Esse pessoal também deveria ser integrado ao processo de tomada de decisões, uma vez que fazem parte da universidade.

Portanto, há muito o quê fazer, mas podemos entender facilmente porque essas tendências estão se desenvolvendo. Isso tem a ver com a imposição de um modelo de negócio em quase todos os aspectos da vida. É a ideologia neoliberal sob a qual a maior parte do mundo tem vivido há 40 anos. Ela é muito prejudicial para as pessoas e não encontra resistência na maioria dos casos. Só duas regiões conseguiram escapar dela: a Ásia Oriental, onde ela nunca predominou, e a América do Sul, nos últimos 15 anos.

Sobre a alegada necessidade de “flexibilidade”

“Flexibilidade” é um termo que é muito familiar para os trabalhadores na indústria. Parte daquilo que costuma ser chamado de “reforma trabalhista” consiste em fazer o trabalho mais “flexível”, ou seja, fazer com que seja mais fácil contratar e demitir pessoas. É, mais uma vez, uma forma de garantir a maximização de lucro e de controle. “Flexibilidade”, supostamente, é uma coisa boa, assim como a “maior insegurança dos trabalhadores”. Deixando de lado a indústria, onde é exatamente isso o que ocorre mesmo, mas universidades não há justificativa para esse tipo de prática.

Consideremos o caso de um curso com baixo número de matriculados. Isso não é um grande problema. Uma de minhas filhas ensina em uma universidade e me disse que sua carga horária sofrerá alteração porque um dos cursos que estava sendo oferecido teve poucos matriculados. Ok, o mundo não acaba por causa disso. O professor ou professora pode dar um curso com uma metodologia diferente ou buscar outra alternativa. As pessoas não têm que ser jogadas fora ou ficar inseguras por causa da variação do número de alunos matriculados em um curso. Há várias possibilidades de ajuste para essa situação. A ideia de que o trabalho deve atender às condições de “flexibilidade” é apenas mais uma técnica padrão de controle e dominação. Por que não dizer que os administradores devem ser jogados fora se não há nada para se fazer naquele semestre? A mesma situação se aplica aos altos executivos das indústrias: se o trabalho tem que ser flexível, o que dizer da gestão? A maioria deles é bastante inútil ou até prejudicial. Então vamos nos livrar deles. E você pode continuar assim.

Para tomar uma notícia dos últimos dias, que tal Jamie Dimon, CEO do banco JP Morgan Chase? Ele teve um aumento bastante substancial, quase o dobro de seu salário, por gratidão por ter salvo o banco de acusações criminais que teriam levado seus executivos para a cadeia. Conseguiram escapar com apenas US$ 20 bilhões em multas por atividades criminosas. Bem, eu posso imaginar que se livrar de alguém assim pode ser útil para a economia. Mas não é disso que as pessoas estão falando quando falam sobre a “reforma trabalhista”. São as pessoas que trabalham que devem sofrer. Devem sofrer por ter um trabalho inseguro, por não ter certeza sobre de onde sairá o pão de amanhã. Por isso, devem ser disciplinadas e obedientes e não fazer perguntas ou pedir por seus direitos. Essa é a maneira pela qual os sistemas tirânicos operam. E o mundo dos negócios é um sistema tirânico. Quando essa lógica é imposta às universidades, ela refletirá as mesmas ideais. Isso não é nenhum segredo.

Carta Maior


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