sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Servidor público: novos desafios



Um serviço público para a Constituição

No momento em que as ruas são tomadas na demanda por melhores serviços, é preciso tratar o assunto do setor público com mais profundidade.

Fábio de Sá e Silva*

Além de fluxo reduzido de veículos em boa parte das cidades do país, por conta do ponto facultativo para os homenageados com a data festiva no calendário, o dia 28 de outubro também costuma ser marcado pela retomada de antigas críticas aos servidores públicos – segmento contra o qual formadores de opinião e muitos integrantes da arena política conseguiram emplacar a imagem de privilegiados, que muito ganham, pouco trabalham, e ainda contribuem para o déficit do setor público. Os festejos, então, não raro se convertem em mal estar. Mas, como tal, podem ser úteis para inspirar alguma reflexão.

A Constituição de 1988 não nos deixa desamparados nessa tarefa. Se é verdade que ela estabeleceu um conjunto relevante de direitos e garantias em favor dos servidores públicos, também é verdade que impôs diversos requisitos e responsabilidades àqueles que ocupam ou almejam ocupar esta condição. Um exemplo que parece banal para as gerações socializadas sob a vigência da Carta, mas que sequer existia antes de sua promulgação, é a exigência de concurso público como forma obrigatória de ingresso no serviço público, ressalvados os cargos em comissão declarados em lei como de livre nomeação (art. 37, I e II).

O objetivo central desse arranjo jurídico – em si mesmo revolucionário, dada a sombra do patrimonialismo que recaía sobre a história do país já ao tempo da transição democrática – era construir uma burocracia estável, qualificada e relativamente preservada de ingerências políticas indevidas. Assim, por exemplo, tendo cumprido um estágio probatório de três anos e sido aprovados por comissão instituída para esse fim, servidores públicos dispõem de estabilidade e só podem ser demitidos após processo disciplinar em que se lhes garanta o contraditório e a ampla defesa (art. 41, caput e § 4o).

Texto, todavia, é sempre e apenas texto. Não revoga e nem reforma de pronto a realidade; quando muito suscita, entre nós, o desafio de transformá-la.

No caso do serviço público, sabemos qual é a tortuosa trajetória pela qual o texto constitucional tem vindo a buscar alguma força normativa. Por um lado, houve intensiva campanha para desqualificar o serviço público, tratando-o como lócus de corrupção e desvios de toda ordem. Por outro, salários foram sendo desvalorizados, garantias foram sendo revistas ou reduzidas, e matérias que careciam de regulamentação posterior – como os direitos de greve e de sindicalização –, tramitam apenas muito lentamente no Congresso.

O ponto final dessa trilha é o abismo no qual, precarizado e/ou capturado, o serviço público passa a ser facilmente descartável em favor de soluções como a terceirização ou a privatização.

No plano federal, o Governo Lula deu início a um inegável processo de revalorização do servidor, retomando a realização de concursos e elevando as remunerações a níveis mais competitivos com as do setor privado. Assim mesmo, aprofundou medidas que geram desincentivo para o ingresso e a permanência no serviço público, como com o fim das aposentadorias integrais, que forçará as novas gerações de concursados a contribuírem para fundos de previdência complementar, caso pretendam, de fato, fazer carreira nesse setor. E fez pouco esforço para organizar e articular os servidores em carreiras com algum sentido substantivo ou estratégico.

Essa abordagem, como têm mostrado alguns levantamentos, ajudou a recolocar o quantitativo de servidores em patamares anteriores aos dos anos 1990. Ao mesmo tempo, especialmente quando se considera a realidade de outros países, está longe de configurar um suposto “inchaço do Estado”, como setores da imprensa procuraram incansavelmente rotulá-la. Seu ponto limítrofe, todavia, é um quadro de servidores relativamente recomposto, porém ainda insuficiente e, sob diversos pontos de vista, consideravelmente mais fraco e mal estruturado.

Contribui para explicar esse novo dilema o fato de que, nesta década que nos separa da eleição de Lula, faltou um projeto para a estruturação do Estado e da gestão pública, sem o que o recrutamento de servidores não se coloca a serviço de nada além do atendimento das necessidades cotidianas, muitas vezes trazidas pelos desdobramentos das próprias políticas públicas.

Soluções “ad hoc”, então, não param de surgir. Em um determinado órgão, gargalos observados na execução de uma política dão ensejo à criação de uma nova carreira que, afinal, mostra-se incapaz de reter pessoal e criar, no interior do aparelho do Estado, a expertise necessária para fazer com que essa mesma política deslanche. No prédio ao lado, ante a necessidade de se resolver pendências em prestações de conta de convênios, outra carreira recém criada ganha rápidos e desestimulantes contornos cartoriais e tenderá, igualmente, a se constituir como mera porta giratória pela qual passarão aspirantes a cargos mais elevados na burocracia pública.

O governo, por sua vez, parece se iludir com as vantagens aparentes trazidas por esse estado de coisas, em especial a possibilidade de travar negociações partindo das divisões existentes ou criadas por suas próprias políticas. É possível, assim, seguir com um processo de valorização dos servidores que parecerá “responsável” à luz dos debates macroeconômicos, mas que talvez não vá muito além nisso.

Festejar o dia do servidor público à luz da Constituição significa comemorar alguns avanços, mas também reconhecer a existência de inúmeros desafios que, em última análise, remetem à necessidade de uma definição política mais clara sobre qual o Estado necessário para dar conta das tarefas próprias ao estágio atual do nosso processo de desenvolvimento.

Vargas assim o fez, com a criação de empresas estatais; os militares deram um passo adiante, com a criação da administração indireta; e mesmo os governos liberais dos anos 1990 não deixaram de desenvolver uma filosofia bastante consistente a respeito do tema, dentro, obviamente, de seus singulares objetivos e visão de mundo. Não deixa de ser irônico que os governos acusados de “estatismo” tenham se dedicado tão pouco a reformar o Estado em sua estrutura para potencializar a sua capacidade de ação.

Entidades corporativas, salvo raras exceções, fazem o que delas se espera: a cada período de negociação postulam por melhores salários e evitam a redução de vantagens e prerrogativas. A grande imprensa, no mais das vezes, joga o jogo dos estereótipos, fazendo extensiva cobertura de desvios que talvez sejam inevitáveis no serviço público (como também o são no setor privado), mas também denunciando carências para as quais um setor público bem estruturado pode não ser condição suficiente, mas é condição necessária.

No momento, porém, em que se diz que as ruas têm sido tomadas por cidadãos na demanda por melhores serviços públicos (ou privados, mas sujeitos à regulação por entes estatais), será preciso tratar o assunto com um pouco mais de profundidade.

* PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University (EUA), Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e Professor substituto de Teoria Geral do Direito da Universidade de Brasília. As opiniões deste artigo são de caráter estritamente pessoal.

Carta Maior

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...