terça-feira, 19 de novembro de 2013

Nápoles, cidade insurgente


Com uma densa rede de caminhos labirínticos, o centro de Nápoles é um dos poucos centros urbanos da Europa dominado por residências de baixo custo.

Nick Dines | Red Pepper

Nápoles oferece uma experiência urbana intrigante para seus visitantes. Com uma densa rede de caminhos labirínticos, cortiços e praças lotadas, o extenso centro histórico da cidade é um dos poucos centros urbanos da Europa dominado por residências de baixo custo. Aqui as típicas características da cidade contemporânea neoliberal assumem um caminho diferente. Nos últimos 20 anos, o aburguesamento dos imóveis investiu em coberturas iluminadas, recuando para a época dos subúrbios pós-Guerra quando a predominância dos miseráveis nas ruas era incômoda demais.

Recentemente, uma crise de desperdício urbano colocou Nápoles sob os holofotes da mídia. A cobertura feita é repleta de erros e preconceitos: as pilhas de lixo não coletado era supostamente trabalho do crime organizado, enquanto os protestos contra aterros sanitários e incineradores eram, na melhor das hipóteses, atos irracionais de quem não queria lixo próximo de suas residências.

Na verdade, a Camorra tem pouco a ver com esse fracasso, o qual, de forma mais prosaica, foi resultado de negligência corporativa e complicações institucionais. Além disso, as intensas mobilizações e campanhas de aumento de conscientização aceleraram o colapso o establishment político local, influenciando uma reviravolta radical a favor de uma agenda de desperdício zero.

Em termos de política de base, Nápoles sempre apresentou dilemas conceituas e desafios estratégicos. Para um esquerdista ortodoxo, a cidade já ostentou uma classe trabalhadora altamente organizada, concentrada em fábricas afastadas, porém constrangida pelas contradições sociais de uma população indisciplinada. Para um ativista perspicaz, Nápoles possui tradições coletivas alternativas e uma tendência à insubordinação que tem, em certas ocasiões, tornado a cidade um vibrante laboratório político.

Durante os anos 1970, assim como em outras cidades italianas, Nápoles foi palco para movimentos baseados em vizinhanças que organizaram, entre outras coisas, a redução das contas de serviços e, seguindo um curso de coléra em 1973, lutaram por melhores condições sanitárias. Dessa experiência emergiu o movimento de desempregados organizados, que em 1975 chegou a ter 15.000 membros. Em sua busca por trabalho regular, ativistas ocuparam prédios públicos e as principais vias de trânsito a fim de paralisarem a cidade.

Hoje em dia o movimento dividiu-se em várias facções. Alguns capitularam para as práticas clientelistas ou gravitaram em torno da direita, mas a maioria dos grupos mantém-se comprometida com o desafio da auto-organização. Isso inclui o "Coordinamento di Lotta per il Lavoro", cuja sede em Via Rosaroll leva o nome de Carlo Giuliani, ativista morto pela polícia em Genoa, em 2001. As táticas são basicamente as mesmas que as do passado. Ou seja, se de repente você se vê em meio a um caos no tráfego, há grande chance de ser uma ação direta de umas poucas centenas de "disoccupati".

Nápoles sempre possuiu um importante papel quanto a movimentos nacionais, greves, marchas contra guerra e protestos de estudantes. Em 1990, estudantes de todo o país ocuparam universidades em oposição à proposta de privatização do ensino superior. O Movimento Pantera, como ficou conhecido, obteve grande repercussão na cidade. Além de produzir uma nova geração de ativistas, levou à revitalização de grande parte do centro histórico, que havia ficado largado fora dos horários de pico após um terremoto em 1980. A lotação dos bares ao redor das praças San Domenico, Gesù Novo e Bellini tem sua origem na reapropriação de massa do espaço público durante aquele período. As universidades da cidade continuaram elas mesmo acomodando uma série de espaços radicais, incluindo o terceiro andar da faculdade de arquitetura em Via Monteoliveto, que abriga a estação de rádio militante Radiolina.

O momento criado pelo Movimento Pantera também levou à ocupação do mais famoso centro social de Nápoles, o Officina 99, no primeiro dia de maio de 1991. Junto com outra ocupação no centro histórico, Lo Ska, o Officina 99 esteve frequentemente na linha de frente das lutas em favor dos imigrantes e contra o desemprego, assim como esteve profundamente envolvida com várias questões internacionais, como a Palestina e o movimento zapatista.

Há vários outros centros sociais em Nápoles, cada um deles com sua própria posição e agenda, mas sem as hostilidades mútuas comuns em Milão, Turim e Roma. "Insurgencia", uma estrutura de dois andares ocupada pela primeira vez em 2004 teve papel preponderante nos protestos contra aterros sanitários em Chiaiano, há 5 anos, e continua particularmente ativa em relação a questões de ambiente urbano. A "Insurgencia" é afiliada ao Global Network, que originou-se do movimento "Genoa Disobbedienti", o qual, ao contrário do "Officina 99", construiu uma estratégia de trabalho com instituições locais.

Na parte oeste do centro histórico, suas inclinações levam ao DAMM, ocupado em 1995 e já declarado como 'centro social mais bonito da Itália' dada sua vista panorâmica para o Golfo de Nápoles e para a Ilha de Capri. DAMM, que quer dizer Diego Armando Maradona Montesanto (Montesanto é uma vizinhança local; Maradona, o maior ídolo do clube da cidade), está localizado em um prédio no topo de uma bizarra rede de terraços desenhados após o terremoto de 1980. Explicitamente menos político do que o Officina 99 ou o Insurgencia, e preferindo o rótulo de "múltiplas zonas de auto-gestão" ao invés do termo obsoleto centro social, a energia do DAMM tem sido canalizada em direção à manutenção de parques, produções teatrais e atividades extracurriculares para as crianças locais.

A partir do DAMM, uma descida de 15 minutos através do antigo coração greco-romano de Nápoles leva ao Ex Asilo Filangieri, a mais recente adição ao catálogo de espaços de auto-gestão da cidade. Um antigo internato para órfãos foi re-habitado em 2012 para sediar um fórum aberto de debates culturais e políticos. Ligeiramente ligado a uma nova rede de teatros e cinemas ocupados anteriormente ameaçados de fechamento, privatização ou redesenvolvimento, a Ex Asilo opera com as ideias de cultura e conhecimento como sendo de domínio público e elaborou um estatuto que garante participação coletiva na estrutura.

Todos os espaços acima citados organizam regularmente encontros públicos e atividades sociais e culturais. O jeito mais fácil de se informar em relação aos eventos mais recentes é pelos pôsteres colados pelo centro histórico, onde é muito provável que se encontre murais feitos pelo Cyop&Kaf, um coletivo de escritores que passou a última década embelezando os muros de Nápoles com monstros parecidos com pássaros ao estilo de Miró e caixões antropomorfizados acompanhados por comentários sociais, o que proporciona um cenário excêntrico para essa cidade tão mal compreendida.

Tradução de Rodrigo Giordano

Carta Maior

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