sexta-feira, 1 de novembro de 2013

“Por que o senhor atirou em mim?”


Douglas, porque deixamos.

Porque aceitamos o esquecimento cotidianamente. E porque continuamos conferindo legitimidade a essas práticas, comentando-as "foi morto porque fez algo".

Caroline Silveira Bauer*

“Por que o senhor atirou em mim?”, perguntou Douglas Rodrigues, ao ser alvejado pelo policial militar. O assassinato do jovem de 17 anos de idade e a frase proferida antes de sua morte serão evocados enquanto não houver profundas mudanças na estrutura da segurança pública brasileira, incluindo uma reformulação das polícias militares, que pode significar sua desmilitarização ou extinção.

Na Argentina, em meados da década de 1990, o capitão de corveta Adolfo Scilingo procurou o jornalista Horacio Verbitsky para confessar sua participação nos “voos da morte” – uma prática de sedar presos políticos e atirá-los de aviões, ainda vivos, no Rio da Prata e no Oceano Atlântico. Segundo seus cálculos, havia sido responsável por arremessar ao rio e ao mar 30 pessoas.

Scilingo pode confessar seus crimes, pois encontrava-se indultado, anistiado, pelo governo de Carlos Menem, que concedeu o benefício a uma série de militares envolvidos com a repressão durante a última ditadura civil-militar. Porém, para além da impunidade e da imunidade que o protegiam, Scilingo fez seu relato a Verbitsky por uma motivação pessoal: desde o último voo que realizou, não conseguia mais dormir, e tinha se tornado um alcoolista. Isso porque, ao se preparar para lançar um dos presos políticos pela porta do avião, olhou para o rosto do prisioneiro, e viu que o mesmo estava acordado. Essa troca de olhares, segundo Scilingo, nunca mais saiu de sua memória, embora tenha efetivado o serviço ao qual era designado. Na impossibilidade de aumentar essa narrativa, que nos rouba a fala, a banda argentina Bersuit Vergarabat compôs a belíssima canção “Vuelos”. Talvez, em uma tentativa de responder a sua pergunta, Douglas, encontremos uma forma de nos expressar.

Scilingo, hoje, cumpre prisão perpétua. A partir das anulações dos indultos de Menem e a reabertura de processos contra os militares, garantindo-se o direito à justiça, a impunidade em relação às violações de direitos humanos durante a ditadura começou a ser combatida. E todas essas mudanças foram possíveis pela vontade política, mas também pela existência de uma grande mobilização social que buscava medidas reparatórias sobre esses crimes da história recente.

Douglas, você morreu porque nós deixamos. Porque temos nos furtado em debater, ampla e profundamente, como foi realizada a transição política – uma transição metaforizada, pois ocorreu sem mudanças – da ditadura para a democracia, que evitou qualquer responsabilização penal ou simbólica pelos crimes cometidos durante os anos discricionários, facilitando a permanência de instituições e práticas autoritárias dentro do aparelho do Estado. Porque aceitamos cotidianamente as políticas de esquecimento, que negam a vinculação de assassinatos e desaparecimentos nos dias de hoje com os cometidos durante a ditadura, e porque continuamos conferindo legitimidade a essas práticas, comentando-as “foi morto porque fez algo”.

Douglas, sua morte é um dos elos que relaciona o presente das práticas policiais com o passado ditatorial brasileiro. Prerrogativas não democráticas oriundas da Constituição de 1967 e sua Emenda de 1969, principalmente relacionadas às polícias militares estaduais são o que regem o modus operandi da nossa segurança pública atual. A Comissão de Organização Eleitoral Partidária e Garantia das Instituições, durante a Assembleia Constituinte, que ficou responsável pela elaboração dos capítulos referentes às Forças Armadas e à segurança Pública, foi presidida pelo senador Jarbas Passarinho, coronel que serviu a três dos cinco ditadores brasileiros, e que foi um dos signatários do Ato Institucional n. 5, que institucionalizou o terrorismo de Estado no Brasil.

Douglas, considerando que o modelo de segurança pública foi estruturado em um período autoritário, não haveria como esperar práticas democráticas em instituições que não correspondem ao Estado de direito. Evidencia-se, desta forma, porque ainda se tortura, se mata e se desaparece: toda a estrutura de segurança pública permite a continuidade das práticas repressivas que são características do regime de terror de Estado orientado pela Doutrina de Segurança Nacional.

Douglas, você morreu porque nós somos herdeiros da compreensão de “inimigo” da ditadura civil-militar, com o qual não se pode conviver, apenas aniquilá-lo. Porque nós somos tolerantes com o assassinato massivo dos jovens negros da periferia, pois vocês são “perigosos”, “diferentes”, “marginais”.

Douglas, não somente o policial que lhe matou é culpado pela sua morte. Mesmo que busquem atenuantes, como um indiciamento por homicídio culposo, ainda assim haverá algum tipo de condenação. O que não sabemos, Douglas, é o quanto sua morte poderá contribuir para o debate sobre a segurança pública brasileira, e isto é uma responsabilidade de todos nós.

(*) Caroline Silveira Bauer é professora de História Contemporânea na Universidade Federal de Pelotas. Doutora pela Universidade Federal do Rio Grade do Sul e pela Universitat de Barcelona, é autora do livro "Brasil e Argentina: ditaduras, desaparecimentos e políticas de memória".

Carta Maior

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