sábado, 21 de julho de 2018

A evolução da esquerda – 2


Hamilton Garcia de Lima - Julho 2018

A submissão do PCB ao radicalismo militar-popular prestista-stalinista arrastou não só os comunistas, mas o conjunto do movimento democrático (ANL) e sindical a uma profunda depressão depois da derrota do levante de 1935 e da onda repressiva que se seguiu. Isso abortou a maré montante da nova sociedade civil após o fim da hegemonia oligárquica sobre o Estado, em meio à crise econômica internacional (Grande Depressão) e à frustração popular com os rumos da Revolução de 1930 — já sob a égide da Constituição de 1934, a primeira constituição democraticamente produzida no país, não obstante o veto à participação eleitoral do PCB.


O retrocesso, produzido pela ação inconsequente da própria esquerda, aplainou o terreno para a formação de um poderoso bloco conservador que desembocaria no golpe militar-varguista de 1937, permitindo que o processo de modernização passasse à direção da direita. Concentrou-se o poder de Estado nas mãos de Vargas e seus aliados em benefício de uma acumulação nacional-capitalista acelerada, sem a participação independente da sociedade civil trabalhadora — incluídos seus estratos médios —, aprisionada em formas paraestatais de associativismo sindical e cultural.



O Estado Novo permitiu a Vargas, a um só tempo, desimpedir o caminho para o capitalismo de Estado e neutralizar tanto a oposição sindical, quanto o empecilho integralista (AIB) a um pacto amplo de alianças em torno do desenvolvimento nacional. Ao franquear livre acesso ao poder — via Ministério do Trabalho e Justiça do Trabalho — aos grupos sindicais moderados, dispostos à barganha com políticos e patrões em troca de privilégios e concessões trabalhistas — o que desaguaria no PTB —, Vargas dificultou também o acesso da esquerda ao movimento operário. Aos comunistas, desarticulados e isolados, sobrariam poucas alternativas, tendo prevalecido aquela de tentar recuperar espaços ocupando a margem esquerda das concessões do varguismo ao movimento trabalhista (populismo). Isso os conduziu a abandonar a extremada oposição ao caudilho e aderir ao queremismo — campanha pela continuidade do Governo Vargas em meio às pressões pela redemocratização e pela constituinte, em 1945.



A manobra tisnaria a imagem de Prestes, cuja mulher, Olga Benário — agente da IC no levante de 1935 —, havia sido deportada por Vargas para a Alemanha grávida de uma filha sua — sendo morta em seguida pelos nazistas em um campo de extermínio —, sem produzir os resultados esperados e ainda reforçando a desconfiança sobre as intenções democráticas do PCB.



Mesmo assim, frustrada a manobra queremista pelo golpe civil-militar de 1945, os comunistas lograram obter a ansiada legalidade, não obstante a manutenção do impedimento à liberdade (inter)sindical, e alcançar uma consagradora votação que os colocaria na quarta posição eleitoral em âmbito nacional, sustentando a mensagem da união nacional — que mais refletia a conveniência internacional de um período de paz para a reconstrução da URSS, do que uma nova estratégia democrática para o socialismo. Logo, o recrudescimento das tensões internacionais (Guerra Fria) e as pressões reacionárias pela contenção dos movimentos sociais — inclusive por parte do PTB, interessado no espólio eleitoral do PCB e na eliminação da sua concorrência sindical — colocariam por terra a moderação comunista.



A cassação do PCB que se seguiu, secundada pela perda dos mandatos parlamentares, traria de volta o fantasma insurrecional, com os comunistas não só abandonando a política de união nacional, como negando a própria ordem democrática (limitada) que haviam ajudado a erigir. Voltou-se assim à pregação revolucionária, agora sob a inspiração da Revolução Chinesa de 1949, sem, mais uma vez, obter adesão popular.



A recidiva pseudorradical seria menos gravosa — dada a relativa ausência de repressão policial — não fosse o extremo sectarismo que marcou a conduta comunista entre 1948-51, inclusive com tentativas de formar grupos de autodefesa armada para enfrentar o arbítrio coronelístico no campo, na esteira da experiência com as Ligas Camponesas — criadas pelos comunistas, a partir de 1945, para driblar o veto católico-latifundiário à sindicalização camponesa.



O fracasso dessa estratégia, cuja expressão urbana foi a malfadada criação de sindicatos vermelhos na tentativa de superar o controle burocrático sobre os trabalhadores, acabaria gerando reação no setor sindical do PCB, que, ignorando as diretrizes do Comitê Central partidário, resolveu voltar aos sindicatos legais, o que levaria à recuperação dos espaços perdidos e ao protagonismo decisivo na greve geral paulista de 1953.



O reatamento dos laços com os sindicatos oficiais, todavia, só reaproximaria os comunistas dos nacionalistas depois do suicídio do líder populista (1954), numa chave semelhante à união nacional, buscando conciliar a via democrático-sindical de acesso à classe trabalhadora com a perspectiva reformista da acumulação de forças para a revolução; um caminho, sem sombra de dúvida, mais realista para a afirmação dos ideais socialistas do aquele seguido nas fases insurrecionais.



As greves e mobilizações do período 1953-64, fortemente influenciadas pelos comunistas, todavia, acabariam por enfraquecer a estratégia reformista, ao deparar com um parlamento petrificado pela ausência de livre organização política no campo — onde residia metade da população — e sem a presença legal do PCB, acabando por alimentar novas correntes rupturistas, agora fora do controle prestista.



Por paradoxal que fosse, o revolucionarismo ganharia tônus com Leonel Brizola (brizolismo), líder radical do PTB gaúcho — partido de amplas bases populares e trajetória ascendente desde a cassação do PCB — que se insinuaria, após a vitoriosa Revolução Cubana (1959), como alternativa nacionalista-popular ao comunismo. Este revolucionarismo avançaria, a partir da renúncia de Jânio Quadros (1961), sobre as bases militares pecebistas — organizadas, desde 1935, em torno do nacionalismo —, bem como sindicais, estudantis e rurais — por meio da recriação das Ligas Camponesas (Francisco Julião) —, através de um programa de mudanças econômico-sociais radicais (reformas de base) a ser implementado por cima do parlamento (“na lei ou na marra”) com o apoio de grupamentos sociais armados (Grupo dos Onze) e a retaguarda dos militares nacionalistas (“dispositivo militar legalista”).



A pressão radical do brizolismo, em sintonia com a radicalização social e a rebeldia instalada nos quartéis, levaria de roldão não apenas o prestismo — historicamente oscilante entre o putchismo de 1935 e a conciliação de 1945-47, o Manifesto de Agosto de 1950 e a Declaração de Março de 1958 —, mas também boa parte do PTB e o próprio Presidente da República (João Goulart), arrastando todos para o mesmo precipício do qual, no final de março de 1964, não seria mais possível recuar.



O terrível desenlace, que modernizaria o Estado, a economia e a sociedade brasileira, ao mesmo tempo que a mergulharia numa nefasta ditadura de alto custo humano e social, lançou a esquerda em nova refundação, estilhaçando o PCB e precipitando sua juventude na luta armada à moda cubana (foquismo), numa reiteração trágica do fascínio nacional pela imitação dos modelos estrangeiros, absorvidos aqui sem a necessária consideração acerca da realidade nacional.



O novo tournant culminaria com a superação da hegemonia marxista-leninista sobre a esquerda brasileira e sua substituição gradual, a partir dos anos 1970, pela sindical-pastoral, que daria ensejo ao PT em 1980. Mas isso é assunto para o próximo artigo.



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Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor da Uenf–Darcy Ribeiro

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