sexta-feira, 20 de julho de 2018

A evolução da esquerda - 1


Hamilton Garcia de Lima - Junho 2018

A esquerda moderna no Brasil, que compreende a organização dos trabalhadores em movimentos de luta por direitos econômico-sociais associados a correntes ideológicas de viés socialista, nasce em meio à confluência, na passagem do século XIX ao XX, da industrialização propiciada pela acumulação dos excedentes econômicos da cafeicultura paulista, da urbanização incrementada pelo fim da escravidão e do incentivo governamental à imigração europeia, visando ao aumento da produtividade do trabalho.


É daí que surgem as primeiras greves e organizações sindicais que iriam colocar em xeque a Primeira República por meio de inéditas reivindicações político-sociais, que abarcavam do direito de organização política à regulamentação da jornada de trabalho, passando por melhorias salariais e de condições de trabalho; reclamos inassimiláveis pelo Estado liberal-oligárquico de então.



A reação conservadora-liberal a tais movimentos, com repressão violenta das greves, perseguição aos líderes e deportação de estrangeiros anarquistas, acabou, ao contrário do que se esperava, impulsionando o ideário revolucionário entre os indivíduos mais ativos das classes trabalhadoras e camadas médias. A partir do bloqueio ao diálogo e à participação, emergem, de um lado, o anarcossindicalismo como força mobilizadora nos maiores centros industriais — cujo ápice foram as greves de 1917-1918 — e, de outro, os tenentes, jovens oficiais subalternos do Exército com capacidade de organização e liderança para deflagrar rebeliões políticas nos quartéis, a partir de 1922, contra o domínio oligárquico-liberal.



O fracasso de ambas as vertentes propiciará a convergência de classe entre operários e setores médios a partir da criação do PCB (1922) e das repercussões da Coluna Miguel Costa-Prestes (1925-1927) dentro e fora da caserna. Os comunistas aparecem, então, em meio aos impactos da Revolução Soviética (1917) — que populariza o marxismo entre nós pela chave russa do “marxismo-leninismo” —, deslocando a influência anarcossindicalista para o segundo plano — influência esta já abalada pela deportação de seus líderes, a partir de 1921, e pelo isolamento político ocasionado por uma radicalização que propunha destruir as instituições vigentes por meio da ação direta de indivíduos de uma classe ainda em formação e que, ademais, era preponderantemente católica e de engajamento sindical majoritariamente moderado.



Do lado dos tenentes, a situação não era melhor, pois sua filosofia positivista, de caráter elitista, estabelecia uma relação vertical-civilizatória com a massa popular, a partir de sua submissão aos cânones da sociedade industrial — vulgarmente traduzidos em termos de fé (Religião da Humanidade) —, que tornava o engajamento político da massa subalternizada não só um contrassenso, mas uma temeridade.



Miguel Costa e Luís Carlos Prestes, engajados na Revolta Militar de 1924, é verdade, rompem com essa perspectiva ao iniciarem sua marcha pelo interior do país — maior em extensão e tempo de duração do que a famosa Grande Marcha dos comunistas chineses de 1934-1935 —, conscientizando os camponeses sobre as razões político-econômicas de sua pobreza e a necessidade da revolução para dar fim a esta opressão e à dominação das oligarquias agrárias sobre o país. Todavia, sem serem derrotados militarmente, os revoltosos se dispersariam pelo país e pelo exterior após verem seus esforços frustrados pela inação política do campesinato e pelo temor das populações rurais diante dos saques e violência que sua passagem provocava.



Enquanto as formas radicalizadas de ação se viam prejudicadas por sua inspiração utópica, permeada tanto por equívocos político-doutrinários como tático-estratégicos, com seu consequente isolamento social, os comunistas, liderados por Astrojildo Pereira e Octavio Brandão, inauguravam uma nova radicalidade, ao romperem com a perspectiva antipolítica dos anarquistas e estabelecerem alianças político-eleitorais com segmentos moderados da esquerda para a exploração dos (poucos) espaços democráticos existentes na República Velha (1889-1930), ao mesmo tempo que procuravam atrair os tenentes para o partido ou uma aliança democrático-popular. Mas, por esses azares da história, perto de colherem os frutos de sua estratégia mais consistente e colada à realidade, os comunistas seriam atropelados por seus camaradas da Internacional Comunista (IC), que, sintonizados com a guinada stalinista ocorrida na União Soviética após a prisão de Trotski, em 1929, pressionaram o PCB a mudar sua direção, tida como excessivamente moderada (bukharinista).



Morto Lenin, em 1924, a russificação do comunismo internacional se completaria nos anos 1930, agora sob a égide do orientalismo despótico do cristianismo ortodoxo, em oposição ao ocidentalismo libertário do materialismo histórico, com reflexos também no Brasil, onde a IC iria iniciar um período de expurgo das lideranças “reformistas” em proveito daquelas que considerava aptas à “ação revolucionária” e mais diretamente ligadas à classe operária (obreirismo). Com isso, a interessante experiência comunista brasileira seria desperdiçada, impondo-se, a seguir, a filiação ao PCB dos tenentes convertidos ao comunismo. Estes, a partir daí, se empenhariam na preparação do terceiro levante tenentista (1935) sob a liderança de Prestes — filiado ao partido, por pressão de Moscou, em 1934 —, cuja derrota político-militar, então sofrida, marcará o recuo, mas não o abandono, do radicalismo pequeno-burguês no interior do PCB.



A substituição do novo radicalismo democrático-popular pelo radicalismo militar-popular (prestismo) está na raiz da sinuosa trajetória da esquerda radical brasileira desde então, que se tornará hegemônica — confundindo-se com a própria noção de esquerda — dada a incapacidade do sistema político, reformado pela Revolução de 1930 e pela Constituição de 1946, de institucionalizar as organizações intersindicais e partidárias dos trabalhadores. Bloqueou-se, assim, a difusão da cultura democrática em seu seio e reforçou-se a internalização do putschismo em sua cultura política.



O blanquismo — que é como o putschismo se propagou na tradição revolucionária internacional — voltaria a jogar um papel fundamental entre nós a partir da Revolução Cubana (1959), em especial depois do golpe de 1964, possibilitando o aparecimento de inúmeras dissidências comunistas “revolucionárias” que viriam, na fase da abertura geiselista — de intensa repressão ao PCB —, somar-se ao PT, mas isto é assunto para um próximo artigo.



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Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor da Uenf–Darcy Ribeiro.

Gramsci e o Brasil



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