domingo, 19 de julho de 2015

Coronelismo: eles estão de volta



Maria Fernanda Arruda

Em 1948, Victor Nunes Leal escrevia “Coronelismo, Enxada e Voto”, que se tornou logo em seguida um clássico da historiografia brasileira. É o comentário exato dos mecanismos utilizados pelos coronéis, durante a República Velha, para assegurar aos senhores do Poder o continuísmo, o seu exercício assegurado pelas eleições “a bico de pena”. Vargas, centralizador, emasculou os coronéis, aparentemente ganhando a guerra que o velho Marechal Hermes da Fonseca havia intentado antes, com as suas violentas intervenções armadas em vários Estados. O mecanismo, entretanto, era demais útil para ser deixado de lado. À sombra do próprio Vargas foram brotando os novos régulos: não eram coronéis, mas senhores de mando forte: Juraci Magalhães, Agamenon Magalhães, Flores da Cunha, Cordeiro de Farias, Nereu Ramos, Benedito Valadares, Adhemar de Barros, Amaral Peixoto. Chegaram até 1964.




À sombra do próprio Vargas foram brotando os novos régulos: não eram coronéis, mas senhores de mando forte

Na aurora da redemocratização de 1945 surgiram os dois grandes partidos políticos: o PSD e a UDN. O PSD foi com o tempo consolidando a imagem de partido associado a uma moderna burguesia nacional, imagem essa que se consolidou com JK. Já a UDN nasceu e coerentemente se manteve agremiação das elites anacrônicas, direitista a mais não poder. Mas não era tão simples: a UDN, dos arroubos fascistóides de Carlos Lacerda, em muitos Estados do Nordeste se opunha ao mandonismo dos coronéis, enquanto o PSD, construindo a Brasília, passarela dos automóveis brasileiros, sustentava o velho coronelismo fora dos grandes centros urbanos. Não foi a UDN que pediu a cabeça de Francisco Julião obcecada que estava pela de Vargas; mas foram os coronéis do PSD.

A Ditadura, inaugurada em 1964, acabou por consagrar a união do moderno, planejado para atender aos grandes interesses econômicos (Delfim Neto, o senhor da avenida Paulista) e o arcaico legitimador político do poder do dinheiro, através do arremedo democrático, que enterrou muitos dos velhos coronéis, manteve uns tantos e pariu novos (Antônio Carlos Magalhães). Ela chegou ao fim em 1985, não com o povo nas ruas, mas com os arreglos feitos com Tancredo Neves e continuados com Jose Sarney, sob as bênçãos da espada de de Leônidas Pires Gonçalves. Criou-se a DEMOCRACIA CONSENTIDA, e, se não a entendermos, não entendermos nada dos dias de hoje. As instituições, mantidas durante a Ditadura, em especial as duas Casas do Congresso, estavam prostituídas, aceitando a imoralidade da força: ao Congresso Nacional havia sido dado o dever de eleger os generais ditadores, aceitar os momentos de recesso, os companheiros nomeados pelo quartel.

A antiga ARENA foi e está até hoje se esfacelando, agora sob a sigla dos Democratas. O PMDB, quando substituiu o idealismo equivocado de Ulisses Guimarães, passando ao comando de Orestes Quércia, incorporou o espírito da ARENA dos mandantes da República, o espírito e a sua competência para o exercício do poder para o que der e vier, tão arcaico quanto o mandonismo dos velhos coronéis; e tão astuto quanto eles, as raposas. O PT nasceu para ser o novo, o futuro, a possibilidade de uma democracia autêntica. E não se fale em fracasso, pois que, assumindo o comando, os governos petistas salvaram milhões de brasileiros da miséria e da pobreza, dando a todos esses companheiros a perspectiva de uma vida digna e gostosa. Mas, e a partir dessa constatação óbvia, mas não aceita pelas elites, é que se poderá afirmar que o modelo petista se esgotou, sem que se tenha algo para substitui-lo. Conservando-se legalista e fiel ao juramento de respeito à Constituição, os dois governantes do PT nem mesmo imaginam a possibilidade de descumprimento do que está escrito nela:

como historicamente sempre aconteceu, golpistas por vocação são as elites, incapazes de entender um governo do povo e para o povo.
Com mais exatidão, é preciso reconhecer que não se esgotou o modelo de Estado do Bem Estar Social pretendido pelo PT. A Constituição esgotou-se. Escrita em 1988, com a preocupação de impedir um novo período de anos de chumbo, ela procurou porto seguro na Carta de 1946, viu o futuro com olhos de passado. Prolixa e agora desfigurada pelas aberrações introduzidas no período FHC, entre outras aberrações, ela nos trouxe de volta o mandonismo e o coronelismo da República Velha. E é assim que:

1.O pacto federativo se manteve tal e qual, sem inovações, aceitando-se o sistema “bicameral” sem discussões, confirmando-se um mapa político onde estão postos como Estados os velhos territórios e Goiás e Mato Grosso divididos, de maneira a existirem mais 18 senadores facilmente controláveis e 48 deputados federais igualmente vulneráveis (confiram-se as listas de políticos cassados ou marcados como corruptos). Assume-se assim uma falácia, inspirada de resto em manobras dos tempos da ditadura, a que permite ficções macabras, como a da aceitação do coronel maranhense Jose Sarney como senador do Amapá; ou Goiás, com dois senadores do PSDB e um terceiro do DEM. Não se esqueçam também os Estados, unidades culturais, mas inviáveis como unidades políticas, que fornecem ao palco político figuras bufas, como as de Collor de Mello, Renan Calheiros, Jader Barbalho, Edison Lobão & Filho. O Amazonas contemplou o nosso Senado, em passado recente, com a figura criminosa de Gilberto Mestrinho, promovido à presidência da Comissão de Ética da Casa. Jader Barbalho é um criminoso condenado, salvo pelo espírito corporativo que anima os senadores. A complacência também fecha os olhos até mesmo a um traficante de cocaína, Zezé Perrella.

2.O Senado torna-se o refúgio confortável da geração mais velha de coronéis, os que já foram e mais os que não conseguiram ser: Jose Sarney, Jose Serra, Aécio Cunha, Jader Barbalho, Edison Lobão. A CÂMARA DOS DEPUTADOS, seguindo a regra constitucional, veio sendo habitada cada vez mais pelo chamado “baixo clero”. O artigo 45 da Constituição atribui a cada Estado uma representação definida em função de sua população: mas nenhum Estado terá mais de 70 deputados, e nem menos de 8. Assim é que os partidos políticos podem comprar deputados, eleitos com “punhadinhos” de votos, mas que, na Câmara, votam e elegem o Presidente da Casa, aquele que ocupa o terceiro lugar na hierarquia republicana e a quem o regimento interno e outras regras patifes acabam por dar poder extraordinário. A partir de 1985 tivemos 15 Presidentes da Câmara: 7 deles do PMDB, 2 do PFL, 3 do PT, 1 para o PSDB, PP e PCdoB. Entre esses 15, 5 originários do Nordeste – seriam bem-vindos, se eleitos livremente pelo povo, não fossem, como o são, produto acabado do voto de cabresto. Quanto aos presidentes do Senado, no mesmo período, 14 deles foram fornecidos pelo PMDB. O mandonismo coronelístico dá ao PMDB o controle do Congresso. E o PMDB, não se esqueça nunca, é o coronelismo.

Os municípios colocam-se, enfim, na base da pirâmide desse mandonismo. O Brasil tem hoje 5.570 municípios, que elegem seus prefeitos e vereadores. Um resumo bem resumido de uma situação dantesca: São Paulo tem 645 municípios, Minas Gerais, a mais fragmentada, tem 853, a Bahia, com 1/3 de seu território sendo um autêntico deserto, 417. A maioria absoluta deles carece de condições mínimas de autonomia financeira, são figuras endividadas e dependentes do Estado e de Brasília. Exemplo dessa distorção inaceitável está em Minas Gerais, a Unidade da Federação com mais municípios, sendo que 70 deles têm menos de 4.000 habitantes. Em Minas está Serra da Saudade, com 622 habitantes. Todos esses municípios, supõe-se que serão capazes de assumir responsabilidades muito grandes nas áreas de saúde e educação. É 1. claramente uma suposição absurda, mas conveniente para os que, detentores do poder de mando coronelístico interessam-se em ter o maior número possível de “enxadeiros”.

O coronelismo na “democracia consentida” consolida-se na omissão da Constituição. Os partidos políticos, base para todo o cenário político nacional, onde não existem e nem podem existir políticos “independentes”, contam com a liberdade que lhes é permitida por uma Constituição que, nos seus mais de trezentos artigos, reserva um deles à sua regulamentação. O próprio Congresso tem se preocupado com tamanha omissão, pretendendo que se disciplinem: o sistema eleitoral, fidelidade partidária, partidos locadores de legenda, domicílio eleitoral, pesquisas eleitorais, imunidade parlamentar, causas de inelegibilidade, e outros. Há hoje no Congresso cabeças que pensam e sabem a necessidade de uma reforma política que não se limite mesquinhamente à discussão sobre financiamento de campanha.

Vestidos com elegância e mau-gosto, empolados, eruditos e bem-viajados, os novos coronéis vivem em Brasília, os pés bem fincados em seus feudos. Fazem qualquer negócio, aceitam qualquer proposta, menos a mais leve ameaça que se pretenda ao seu mandonismo. Na defesa de sua preservação, usam todas as armas, estratagemas e falsidades. Utilizam-se de representantes que atingem o máximo de ridículo, como o senhor Cunha ou o senhor Calheiros. Do PT, enquanto governo, querem apenas sugar-lhe o sangue, ter o poder, que não será nunca de direita, nem de esquerda e nem de centro. É a política de negação da Política.

O PT tentou até agora conviver com o coronelismo, copiando-o em alguns maus procedimentos. É sempre apanhado pela Justiça, pois que ela também está a serviço do coronelismo: basta que se mire o sorriso debochado de Gilmar Mendes. Para que a proposta do PT de Lula não sirva apenas de exemplo para o Mundo, mas que possa ser aceita e continuada no Brasil, só há um caminho: uma nova práxis política, baseada numa Constituição que dê ao povo brasileiro a democracia, sem restrições, sem consentimentos de uma elite. A elite brasileira é arcaica? Sim, ela é arcaica. Ela só sabe fazer a república dos coronéis.

Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras.

Correio do Brasil


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