sábado, 27 de setembro de 2014

Quando Estado e Judiciário se unem para promover o apartheid urbano


João Whitaker

A cidade de São Paulo viu pela enésima vez o seu centro transformar-se em praça de guerra. Guerra de um só lado, como os grandes exércitos que pelo mundo massacram populações indefesas. Nosso exército é a PM, mandando bombas e balas de borracha em mães com bebês no colo, crianças em cadeira de rodas, idosos. Esses são nossos grandes criminosos, contra os quais o Estado mobiliza forças surpreendentemente numerosas e “eficazes” se compararmos ao flagrante fiasco desses mesmos “agentes da lei” na política de segurança pública e no combate ao crime comum.


O sempre combativo Dito, advogado e liderança do movimento de moradia, fez um relato marcante do que ocorreu:


“Pessoas apanharam, crianças e mulheres foram atingidas por bombas dentro do prédio. Teve pessoas com braços quebrados, com pernas, braços e peitos atingidos por balas de borracha; crianças, bebês, mulheres e idosos foram detidos e conduzidos ao 3º DP. Foram expostos no chão do posto de gasolina na rua Aurora com a avenida Rio Branco; uma criança numa cadeira de rodas foi conduzida ao DP dentro de uma viatura policial. Homens, mulheres e crianças relataram que apanharam dentro da ocupação”.


Qual o grande crime para tamanha violência? A imprensa martelou, o dia todo, que se tratava da retirada dos “invasores” de um antigo hotel, hoje vazio, no centro da cidade. A pedido do proprietário, o juiz deu-lhe a reintegração de posse. Se deixarmos barato, diz o pensamento comum, estará “liberada”, e portanto incentivada, a livre invasão à propriedade alheia. Se deixarmos esses vândalos perigosos saírem ocupando por aí qualquer imóvel vazio, logo mais teremos gente invadindo nossas garagens, nosso quintal, nossas casas, quem sabe. Ou poderei, eu ou você, invadir o apartamento que ficou vazio, daquela vizinha de idade que já morreu. Em outras palavras, a sociedade está “em perigo”, estamos, nós os ricos e brancos, ameaçados no nosso direito sagrado à propriedade. Pobres de nós.


Ocorre que, vejam vocês, as coisas não são bem assim. Ocorre que a lei, mais especificamente a do Estatuto da Cidade, de 2001, se for realmente seguida, estabelece que edifícios vazios em uma sociedade com tamanha demanda por moradia, em áreas centrais com tanta infraestrutura (que custam caro à sociedade, que oferece ali esgoto, luz, água, coleta e lixo, linhas de ônibus, e assim por diante), não cumprem sua função social. São, por esse ponto de vista, ilegais. Para piorar, a maior parte deles tem dívidas astronômicas de IPTU, sem que nada lhes ocorra por causa disso.


Frente a isso, a população sem moradia apenas tensiona e traz à luz do dia essa contradição ao ocupar, e não invadir, centenas de imóveis mantidos vazios – e, portanto, ilegais frente ao Estatuto da Cidade – sem nenhuma razão aparente nas cidades brasileiras. Vale lembrar que, no Brasil, são cerca de 5 milhões de unidades habitacionais vazias, para um déficit de cerca de 6 milhões. Os números, simbolicamente que seja, falam por si.


O direito à moradia é um dos direitos fundamentais da Constituição brasileira, estabelecidos em seu artigo sexto. Por que, então, invariavelmente, nossos juízes ignoram esse caso e colocam o direito à propriedade, mesmo que uma propriedade frágil, pois irregular frente à cidade, acima do direito fundamental à moradia?


Tomemos o famoso, mas triste, caso do Pinheirinho, ocorrido em São José dos Campos há pouco tempo: um terreno de 30 mil m², ocupado havia oito anos por cerca de 1500 famílias. A terra não só estava vazia há anos, como era parte da massa falida de uma empresa sob intervenção judicial do megainvestidor Naji Nahas, envolvido nos mais diversos escândalos financeiros. Mesmo face à fragilidade dessa “propriedade”, e a milhares de famílias instaladas que comprovavam a utilidade pública do terreno e sua viabilidade para uso de moradia, a juíza escolheu proteger a sagrada propriedade, mandando retirar, à força da bala, todos de lá.


Havia ali projetos avançados de urbanização e incorporação daquele bairro à cidade. Brutalmente ceifados por uma decisão judicial altamente questionável. O que estava em jogo, na verdade, e que foi defendido de fato pelo Poder Judiciário, era impedir a democratização da cidade e o direito dos pobres a terem nela um lugar digno, e não o direito único a uma moradia no distante exílio da periferia.


No caso de São Paulo, o que o juiz ignorou e que a imprensa não contou é que o tal hotel nunca foi hotel. O prédio, projeto do renomado arquiteto Giancarlo Gasperini, foi concluído em 1991 para ser um hotel, mas nunca, nem um dia sequer, funcionou como tal. Com a morte do empreendedor, seus sete filhos “se desencantaram” com o negócio e não se entenderam sobre sua venda. Ficou vazio, à exceção do seu térreo, primeiramente usado como cinema, depois sumariamente cimentado para virar estacionamento. Um caso típico de subutilização, passível de aplicação do IPTU Progressivo, de desatendimento à função social da propriedade urbana, de retenção de imóvel para a simples (e pouco certa) especulação por alguma valorização. Seu dono, aliás, possui outro imóvel, também vazio, na Rua 7 de Abril, ali perto.


Os “bárbaros” que o ocuparam, chamando atenção tanto para a falta de moradia no país para os mais pobres quanto para a ilegalidade da situação desses prédios, haviam se organizado de maneira exemplar. Buscavam formas de viabilizar o seu uso para moradia, reincorporando-o à sociedade. Tenho uma aluna que faz seu trabalho de graduação nesse edifício. Outra aluna da FAU-USP também o fez lá. Propõem e mostram como é possível um projeto de reabilitação do edifício, para moradias nos andares, mas com usos diversificados e comerciais nas enormes áreas do térreo e dos primeiros andares. Uma solução que poderia beneficiar a todos, inclusive ao proprietário.



Uma possibilidade que é aventada é a de que a prefeitura compre o edifício, pelo seu valor de mercado. De novo uma situação de gritante privilégio à propriedade. Por que o dono de um imóvel desses mereceria receber uma fortuna por um prédio que há décadas é irregular? Pior, pelo que disse o prefeito em entrevista, pede-se por ele a bagatela de R$ 40 milhões. Parece que, para o mercado imobiliário do centro, a regra econômica básica da oferta e da procura inexiste. Como pode um imóvel ter esse preço, se está há décadas vazio e sem demanda de compra?



Em qualquer “país civilizado”, como gosta de dizer nossa elite, um juiz recusaria, em um caso destes, dar a reintegração automática de posse. Não sem ao menos estimular o diálogo e a negociação. Na Inglaterra, há caso em que a justiça transferiu a propriedade de uma casa nos arredores de Londres, por considerar que seus ocupantes, no caso brasileiros que ali fizeram escola de samba, de capoeira, e assim por diante, davam uma contribuição cultural importante ao bairro, muito maior do que a manutenção da casa vazia. Mas nem precisamos ser tão radicais. Em geral, na Holanda, na Alemanha, na França, juízes impõem a negociação só entre atores envolvidos.



“O representante do Estado poderá, por meio de requisição e por uma duração de um ano renovável, proceder à posse parcial ou total de moradias vazias ou insuficientemente ocupadas, com o objetivo de destiná-las a pessoas em situação de desabrigo”. Um ardoroso neoliberal diria que o texto é de alguma lei comunista da antiga União Soviética. Trata-se, entretanto, do Código da Construção e Habitação, em vigor na França, um país nas últimas décadas notadamente liberal. Mostra o quanto, em outros lugares, o direito à moradia tem prioridade sobre o direito à propriedade.



Mas, no Brasil, o diálogo não é o objetivo. Em vez de dar um prazo para que proprietário, ocupantes e prefeitura se entendam, para estimular uma solução viável que desse ao prédio sua função social e o tornasse instrumento de um povoamento democrático do centro, o juiz optou pela solução do privilégio à sagrada propriedade.



Vale dizer, inclusive, que o diálogo poderia ser útil para todos. Muitos dos proprietários de imóveis vazios não são especuladores inescrupulosos. Há questões de herança, impasses jurídicos, propriedades falidas, e nesses casos negociações com o Poder Público poderiam desatar nós.



A postura do judiciário, aliás, é exemplarmente elitista e preconceituosa. No Brasil, a dureza da lei é para os pobres. Para os ricos, a condescendência. Há centenas de imóveis de luxo na cidade que se apropriaram de áreas públicas, outros que não pagam IPTU: shoppings centers, centros de convenções, clubes sociais, clubes esportivos. No Ibirapuera, toda uma faixa do parque foi ceifada para a instalação de mansões que estão lá há décadas. Nunca se viu, em nenhum caso, cenas de guerra para a reintegração de posse.



Mas o Exmo. Juiz determina a reintegração de posse, sabendo de suas consequências. Com nossa polícia, sedenta para obedecer friamente a um chamado à violência contra os pobres, as consequências da sentença são conhecidas de antemão: violência desnecessária, injusta e covarde. A justiça, nesse caso, alia-se ao Estado em seu papel opressor e de proteção aos privilégios dominantes.



Para não ser injusto, vale lembrar de uma única ocasião, até onde eu saiba, em que um corajoso juiz de São Paulo deu, há uns dois anos, sentença favorável ao movimento, com inequívoca argumentação: se o Estado não é capaz de garantir o direito fundamental à moradia, e se o edifício está vazio e não cumpre sua função social, que fique ocupado até segunda ordem.



Mas, que ninguém se engane. Isso foi uma exceção. No geral, o que temos é a participação clara do poder judiciário e da força pública no intuito único de resguardar a lógica da cidade segregadora. O que não se quer, sejamos claros, é abrir brechas para que tenhamos pobres nos centros, ou mesmo em toda a cidade “que funciona”. A estes resta a porta da periferia, se é que lá conseguirão encontrar onde morar. Em cenas como as descritas, vemos Justiça e Estado se unindo para produzir e proteger o apartheid social (e racial) urbano.



Há cerca de 30 ocupações no centro com pedidos de reintegração de posse. Se a ignorância jurídica prevalecer, ainda teremos uma tragédia. Não ouso pensar que isso possa ser parte de uma radicalização pré-eleitoral, o Estado buscando os votos conservadores que aplaudem toda e qualquer repressão a “vagabundos”


Minha sugestão? Que a prefeitura se antecipe: que no contexto do novo Plano Diretor e da revisão da Lei de Zoneamento, todos esses edifícios sejam imediatamente definidos como Zonas Especiais de Interesse Social, obrigando seu uso majoritário para habitação social, e sobre eles recaia a cobrança do IPTU Progressivo, obrigando seus donos a dar-lhes uso. De tal forma que caia por terra qualquer perspectiva de lucro exacerbado sobre eles, arrefecendo na teoria a pressa pela reintegração, e abrindo portas para soluções negociadas.


Quem sabe comecemos assim a ver o Estado em um papel regulador e instigador de uma cidade verdadeiramente democrática.



João Sette Whitaker é arquiteto e urbanista.

Correio da Cidadania

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