terça-feira, 23 de setembro de 2014

Política não é religião

Maria Ângela Bulhões

Talvez para a maioria dos leitores seja óbvia a concepção de que política e religião tenham campos distintos de ideias. Todavia, gostaria de abordar alguns aspectos que por vezes fazem com que muitas pessoas se relacionem com as instituições Igreja e Estado da mesma forma.

Freud escreveu no texto O futuro de uma ilusão (1927) sobre como a crença humana em um deus todo poderoso e eterno era semelhante à necessidade infantil de sentir-se protegido pela figura forte do pai. Ele pensava que isso se dava pelo fato da espécie humana ainda estar numa etapa infantil do desenvolvimento, e acreditava que com o tempo e o progresso da ciência, iríamos ultrapassar essas ilusões. Considerou que a natureza sempre ameaçou e deixou os humanos a sua mercê, e que sem condições de defesa nos restava apenas negociar favores em troca de proteções. Viriam dessa crença todos os ritos que criavam formas de diminuir a ira da Natureza. Afinal, crianças bem comportadas merecem o amor do Pai. Freud acreditava ainda que as sociedades abririam mão de suas ilusões em troca dos conhecimentos advindos do campo da ciência, que prometia mudanças radicais na relação dos homens com as forças da natureza. Para Freud, os homens providos dos conhecimentos construídos pela razão estariam melhor instrumentalizados para uma vida adulta em sociedade.

Possivelmente Freud também estava idealizando o poder da ciência e da razão ao imaginar que estas desbancariam completamente as religiões. O ponto de semelhança entre religião e ciência continua sendo aquele de dar sentido ao que não conseguimos explicar. Cabendo ainda à ciência o trabalho de desmistificar os mistérios dessas forças. Freud nem chegou a comentar sobre o fato de que a humanidade poderia, ainda, tentar fazer da ciência um saber tão total quanto o religioso.

Bem, as igrejas e cultos continuam em alta e ganham seguidores a cada dia em nosso país. O papel social da religião merece ser analisado. As igrejas acabam sendo não apenas locais de acolhimento para o nosso desamparado humano, mas também servem como organizadoras das regras e interdições sociais. As leis de deus (escritas pelos homens) condicionam comportamentos. A ideia de um mundo sem medidas para os prazeres da carne, e sem limites para destruição, encontra nas religiões a aceitação das proibições em troca do amor de deus. As igrejas proíbem e protegem. As religiões propõem uma voz única: a voz de deus. Deus seria, assim, a encarnação do amor e da lei.

A função do Estado não pode ser confundida com a da igreja. O Estado também tem uma função social, mas não a mesma das religiões. O Estado deve prover aos cidadãos condições para que estes possam gerir suas vidas de forma digna. Todavia, não cabe ao Estado estabelecer regras para a vida privada de seus cidadãos. Ao Estado cabe a gerência dos interesses públicos, mas apenas os grupos dentro de uma sociedade são capazes de produzir mudanças nos códigos através de suas ideias inovadoras. As leis que estabelecem as condições e regramentos para a convivência são definidas através das muitas vozes que representam os interesses comuns. A autoridade em nossa sociedade é um representante da lei que condiciona a todos em nome do coletivo.

O Estado não pode tornar-se a imagem do grande pai. O Estado democrático exige a representação das varias parcelas da sociedade para que, dessa forma, as forças de poder e divisão dos direitos e deveres possam estar equilibradas. A atitude infantil e dependente dos eleitores, que colocam os governantes na posição de salvadores que vão cuidar dos interesses de todos os cidadãos corretos, empobrece a discussão política. Aquela cena do político nas vilas beijando criancinhas deveria ser banida de nossas vidas, pois nos apresenta a política na sua vertente mais pobre e caricaturada. Ficamos atrelados à ideia de sermos cuidados e assistidos pelos governantes, e perdemos a dimensão da nossa responsabilidade política e social na vida pública cotidiana. As frases cunhadas para as campanhas políticas não respeitam o mínimo de inteligência ao repetirem insistentemente as mesmas promessas todos os anos. Por um país com mais saúde, educação e segurança! Tudo para uma nova política! Esse tipo de abordagem já não engana mais quase ninguém.

A forma de organização política de um país deve ser muito mais complexa do que a forma de organização do pensamento religioso. Existe a constante tensão entre formas diversas de pensamentos, crenças e comportamentos em qualquer sociedade. O amadurecimento do processo democrático exige uma sociedade crítica e participativa, que não espere que a solução de seus problemas venha do céu. Pois não vai cair do céu uma sociedade mais educada. Continuaremos eternas criancinhas esperando que o pai venha em nosso socorro, ou reconheceremos que já grandinhos temos que nos organizar e lutar por nossa sobrevivência? Em qualquer grupo social haverá sempre diferenças e conflitos que precisarão ser mediados através da palavra. Talvez com muita persistência e participação consigamos realizar algumas mudanças que melhorem a vida em nosso país. Quiçá.


Maria Ângela Bulhões, psicanalista membro da APPOA, psicóloga do ambulatório do Hospital São Pedro.

Sul 21

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