quinta-feira, 3 de abril de 2014

A noite em que lembramos o que restou da ditadura


No Rio, grupo Tortura Nunca Mais relembra, entre outros, Amarildo e os guaranis, para frisar que violência contra pobres e desigualdade brutal persistem

Arlindenor Pedro


O dia 1º de abril deste ano foi um dia singular. Em todo o país, inúmeras manifestações, organizadas por um vasto leque de entidades, marcaram os cinquenta anos da deposição do presidente eleito João Goulart em 1964. Foram palestras, debates, atos culturais e políticos, marchas e comícios em praças públicas, mostrando de forma incisiva e criativa que a sociedade brasileira não quer esquecer o que ocorreu naquela data, quando o país mergulhou na mais sangrenta ditadura da sua história.


Este clima de comoção havia se iniciado dias antes, nas redes sociais. Internautas substituíram seus avatares por figuras de desaparecidos e mortos pela ditadura. Filhos fizeram homenagens a seus pais militantes. Pais choraram seus filhos torturados. Textos, vídeos e músicas relembraram os dias de chumbo do regime militar e trouxeram à tona revelações e novas formas de enfoque sobre a ditadura. O ambiente manteve-se durante dias. Espraiou-se para discursos nos Legislativos, textos na mídia, aulas e seminários nas universidades e escolas.


Foi talvez a maior comemoração de uma data, na história recente do Brasil, que não ficou restrita a ações de marketing ou de máquinas governamentais. Atingiu grandes parcelas de uma juventude que pouco conhecia desses fatos históricos . Embora não fossem vistas grandes multidões, a diversificação dos atos políticos e a utilização das redes sociais deram dimensão nacional à data.


Dos diversos enfoques dados ao cinquentenário do golpe, destaca-se a necessidade de rever a Lei da Anistia Política e sanar a chaga aberta, até hoje, pela existência de desaparecidos políticos que não puderam ser pranteados por seus familiares. Entre que abordaram este aspecto, um dos mais concorridos foi o do Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, realizado nas dependências da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com o Centro Acadêmico Cândido de Oliveira .

Talvez pelo fato de realizar-se em um prédio histórico, palco de importantes acontecimentos na República, e particularmente por ter ali ocorrido, há cinquenta anos, um episódio marcante de resistência ao golpe, o evento revestiu-se de enorme significado.


Trouxe à memória de todos o ocorrido na tarde de 1 de abril, quando o então capitão Ivan Proença, que na época comandava uma coluna de tanques que guardava a Casa da Moeda, conseguiu, em um gesto heróico retirar estudantes e professores da faculdade, que se encontrava cercada por forças insurgentes, levando-os em segurança para fora da área conflagrada (o centro da cidade) e livrando- os da prisão que era certa. Tal ato, inclusive, levou-o a ser cassado mais tarde e expulso do exército.


Mas, o que saltou ao olhos no evento organizado pelo Tortura Nunca Mais – que promove, todos os anos, a entrega de um medalha àqueles que se destacam na luta social, foi o caráter libertário e de cobrança ao Estado por suas investidas contra os movimentos sociais.


Longe de se transformar em uma solenidade nostálgica e fora da realidade contemporânea, o ato realçou o momento em que vivemos, com o povo nas ruas reclamando por melhores condições de vida e o caráter opressor do Estado com sua política de criminização dos movimentos sociais.


Dentre os momentos marcantes desta solenidade, onde foi homenageada a família do ex-presidente João Goulart, comoveram a todos o depoimento dos familiares do desaparecido Amarildo (cujo corpo até hoje não foi encontrado) e da mãe do morador de rua Rafael Vieira, condenado por carregar frasco de Pinho Sol em manifestação, em sentença draconiana e política da Justiça – que procurou convertê-lo em “exemplo”, para desestimular os movimentos contestatórios.


Homenagendo tanto figuras como Julio Assange, do Wikileaks, como a memória de guerrilheiros urbanos e do Araguaia, políticos militantes, índios guaranis e ativistas do MST, o Tortura Nunca Mais prestou, naquela noite, um importante serviço aos movimentos sociais do país. Foi muito além das solenidades oficiais promovidas pelo Estado Brasileiro, deixando claro que, embora a ditadura tenha sido afastada do poder, após cinquenta anos ainda permanecem as sequelas do regime, mormente a violência contra as maiorias e as desigualdades sociais.


Embora , possamos tristemente ouvir figuras públicas – inclusive que tiveram papel no movimento de resistência contra da ditadura – tentando desqualificar a luta pelo total esclarecimento dos fatos ocorridos neste momento obscuro da vida nacional, a existência de movimentos como o Tortura Nunca Mais passa a ter um papel crucial como instrumento da manutenção da chama da liberdade do cidadão.


A ligação que faz entre luta empreendida contra a ditadura pelos ativistas da época e as lutas contemporâneas dos ativistas sociais, coloca este movimento (e outros semelhantes) na vanguarda dos movimentos sociais, dado o caráter político e libertário das suas atividades.


Outras Palavras

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