domingo, 27 de abril de 2014

Estilhaços sobre Copacabana

Feliz Páscoa, Copacabana!

Francisco Carlos Teixeira

Os feriados de Páscoa e da festa de Jorge, o santo guerreiro, trouxeram de volta ao coração da Zona Sul do Rio de Janeiro, uma guerra esquecida, larval.

Estilhaços sobre Copacabana
O mundo em Copacabana
Tudo em Copacabana, Copacabana
O mundo explode longe, muito longe
O sol responde
O tempo esconde
O vento espalha
E as migalhas caem todas sobre
Copacabana me engana!



(Caetano Veloso)


Os feriados de Páscoa e da festa de Jorge, o santo guerreiro, trouxeram de volta ao coração da Zona Sul do Rio de Janeiro, uma guerra esquecida, larval, que queima diariamente nas periferias cariocas e que, muito comumente, são relegadas aos cantos de página ou aos trinta segundos dos noticiários de TV.


Desta feita, os estilhaços caíram sobre Copacabana! Após um cerco não explicado, fechamento de trânsito e de um agrupamento de policiais da UPP da comunidade do Pavão-Pavãozinho, em Copa-Ipanema, ser cercado por populares, surgiram dois corpos: Douglas Rafael da Silva Pereira, O DG, dançarino de um programa de TV da Rede Globo e Edison Silva dos Santos. Após tentativas de ocultamento, laudos errados, e versões variadas restaram certezas estarrecedoras: dois trabalhadores, sem ligações com o tráfico, desarmados, após um conflito com a PM carioca estavam mortos à tiros.


Podemos dizer, com a tranquilidade de um jornal da TV, que foram vítimas de balas perdidas no confronto entre traficantes e a polícia. Não, não podemos! Cabe dizer um basta e um basta que busque a verdade e ponha um ponto final ao verdadeiro massacre de cidadãos brasileiros por parte de uma instituição pública, paga e antiga para proteger vidas. A história de Douglas DG e de Edison são novos capítulos de uma crônica do sem fim. A continuidade da violência policial nas grandes cidades brasileiras, como o Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Recife à frente, impõe a necessidade imperiosa de repensar as instituições republicanas, a polícia em primeiro lugar, no Brasil e suas relações com o regime representativo inaugurado ao final da ditadura civil-militar de 1964-1985.


Após anos de resistência e de indignação contra a tortura como política de Estado no Brasil (e que atingia, principalmente, membros da classe média, estudantes e intelectuais que lutavam contra a ditadura), a ira da população voltou-se contra a corrupção (no rastro da “caça aos marajás” de Fernando Collor de Mello, 1990-92), voltando suas costas contra outro horror: a continuidade sistemática da tortura e das mortes praticadas pelo poder público no Brasil.


Não poderia aqui descrever todos os horrores da violência urbana cotidiana no Brasil. Sequer poderia fazê-lo em uma só das nossas grandes cidades, o Rio de Janeiro, por exemplo. A multiplicação dos casos de prisão arbitrárias e a consequentes “fábrica” de autos de resistência que “justificam” mortes decorrentes da “resistência” à “autoridade”; a humilhação de cidadãos durante “blitzes”, revistas e, mesmo, durante o processo de apresentar uma queixa numa delegacia ou simplesmente num incidente de trânsito transformou-se numa epidemia, que pode, em qualquer momento, em qualquer situação, tornar-se “desacato” e terminar em espancamento, tortura e morte.


Claro, infelizmente, que na maioria das vezes, e ainda uma vez, com vergonha, devemos repetir isso, os alvos mais comuns são mestiços, pretos, pobres em áreas periféricas do Rio de Janeiro. Aí, repete-se a rotina tão comum: a ação policial, é precária, desprovida do mínimo respeito pela cidadania, dá-se ampla confusão entre criminoso e a população e os agentes do Estado não hesitam em abrir fogo em meio à áreas densamente povoadas. Em outras situações, como no Caso Amarildo, emerge a tortura sistemática em prédios públicos por funcionários públicos fardados e, enfim, a morte também sistemática de indivíduos – muitos, demasiados, sem quaisquer vínculos com o crime organizado (como Amarildo ou Dona Lucia Ferreira, no Rio de Janeiro). Tudo isso já nos impede de construir uma crônica destes “mortos sem rosto”. São em média cinco pessoas mortas diariamente pela polícia nas grandes cidades brasileiras. A crônica de tais mortes ficou condenada a não ter rosto, nome, laços, causas – tudo isso submerso na sua multiplicação diária dos seus próprios números.


Setores amplos da sociedade, muitos desavisados ou atemorizados pela própria violência, tendem, sempre, a considerar a vítima da violência policial como culpado, de alguma forma relacionado com o narcotráfico, o que – para espanto – justificaria sua morte. Poucas vezes param para pensar que o assassinato de um criminoso é crime e seu autor é, ele também, um criminoso. Contudo, para dizer toda a verdade, os mortos que povoam o nosso cotidiano não eram traficantes e nem mesmo ladrões de galinha: Amarildo era pedreiro, trabalhador e pai; Dona Lucia Ferreira, baleada e arrastada por uma viatura policial pelas ruas de seu bairro, era “ajudante de serviços gerais”, criava quatro crianças; Douglas, DG, era dançarino, pai e visitava a filha – somente estes três casos bastariam para explicitar o muito de errado que há na ação da polícia.


Todos tinham sonhos e projetos, mortos perante uma truculência que não provocaram. Queriam só viver a esperança anunciada de todos os brasileiros.

Como Douglas DG:


E eu superbacana
Vou sonhando até explodir colorido
No sol, nos cinco sentidos
Nada no bolso ou nas mãos

(Caetano Veloso)


Não se trata de considerar a polícia como mal preparada, desaparelhada ou sem as instruções necessárias. Na verdade, a polícia assumiu, nas nossas grandes cidades, um papel que extrapola as funções de qualquer instituição republicana, somando em si mesmo o papel de “senhores da guerra”, policiais, acusadores, juízes e algozes, violando a Constituição, dita “cidadã”, e criando em amplas camadas da população – mesmo no centro do Rio de Janeiro, como foi nesta dura Páscoa de Copacabana – um forte sentimento de revolta, humilhação e frustração em grande parte da população.


Para não ser acusado de parcialidade, ouso transcrever um trecho da matéria d´O GLOBO (24/04/2014) sobre o motim da semana santa no Rio: “Outro jovem, de 20 anos, apresentou um registro de ocorrência, feito há poucos dias. Contou que ele e seu irmão foram abordados por quatro policiais da UPP. Segundo o rapaz, um dos PMs o teria xingado durante a revista. — Respondi que ele não poderia dizer aquilo. Ele deu dois tiros na parede perto do meu ouvido. Achei que fosse ficar surdo — lembra o jovem, dizendo que chegou a ir à sede da UPP, onde lhe disseram que nada poderia ser feito”. O pior de tudo é que nada, nada mesmo, pode ser feito. As autoridades, de forma clássica, mentem e fornecem informações para a mídia de forma leviana: Douglas DG teria sido vítima de uma “queda”, não teria sido alvejado, teria se envolvido com traficantes, etc. Menos de 24 horas depois o corpo do jovem apresenta-se como prova irrecusável, cena exposta da truculência: escoriações, marcas de algemas no pulso e um tiro nas costas desferido de curta distância. O laudo oficial fala em morte por hemorragia: no local havia apenas pequenas marcas de sangue! Onde Douglas foi morto? Desfeita a farsa, anunciada como “furo” pela TV, multiplicam-se novas versões, todas “repercutidas” pela mídia com um objetivo claro: transformar DG em criminoso!


Neste momento a polícia corre a fornecer outra explicação: vítima de bala perdida, tal como Dona Lucia Ferreira, na “guerra” entre traficantes e a polícia. Amanhã, quando esta versão também cair, surgirá o auto de resistência e depois... Bem, depois será mais um “morto sem rosto”.


O mais escandaloso de tudo é o tratamento dado pela grande mídia: voltamos aos traficantes, aos vândalos, aos baderneiros. A grande preocupação da jornalista era com a “imagem o país nas vésperas da Copa do Mundo”. Corrigir, impedir, punir a truculência policial e sanar, de vez, suas causas não estava em pauta. Ou, como outra página d´O GLOBO nos diz, a preocupação é com o grande prejuízo das classes médias: “[um indivíduo] afirmou já estar preocupado com uma possível dificuldade para vender um apartamento de três quartos na Rua Sá Ferreira.


— Paguei em torno de R$ 800 mil. Estava tentando vender por R$ 1,3 milhão.


Agora, acho que vai complicar. O problema é que o prédio fica exatamente de frente para a comunidade — disse”. Realmente a especulação que pode ganhar mais do que um lote de moradias populares numa só transação está prejudicada. E a filha de Douglas DG? E as crianças de Dona Lucia? E os filhos do Amarildo?


Na TV os especialistas em segurança, todos de origens e passado policial, falam coisas sem sentido: os bandidos voltaram para tentar impedir a Copa do Mundo!


Ora, voltaram de onde? De onde nunca saíram? Voltaram dos conluios com a polícia, que os mantiveram ilesos durante seis anos de UPPs? Voltaram dos condomínios de luxo onde a PF pode encontrar alguns? Então, senhores, só resta uma constatação: a política de segurança pública chamada de UPPs falhou. A insinuação de que há um fundo político – em especial contra políticos que, em espectros totalmente opostos apontavam, desde logo, o fracasso da política de pacificação e seu caráter de panaceia eleitoral – é um recurso de derrotados e uma ameaça ao livre exercício de crítica e de expressão e atinge diretamente a credibilidade das instituições republicanas.


Os traficantes participaram do motim de Páscoa de Copacabana? É bem possível, posto que estavam lá, e de lá nunca saíram. Mas, a questão é o caráter massivo das revoltas urbanas atuais. Só há uma palavra para descreve-las: são motins populares. Há uma longa historiografia sobre tema. Mas, talvez em inglês a mídia entenda melhor: “riots”, tais como aqueles de Londres, Paris e Los Angeles, e causados pelas mesmas razões: as péssimas condições de vida, os péssimos serviços e a truculência policial. Enquanto isso não for assumido e enfrentado, incluindo aí a prisão exemplar de torturadores e homicidas em cargos públicos, não adianta maquiar a segurança pública. Esta, infelizmente para os nossos dirigentes, não é artigo das “Organizações Tabajara” com objetivo de ganhar eleições.


O combate à truculência policial é a chave para o apaziguamento social no Brasil: não podemos pensar numa democracia plena quando agentes do Estado sequestram, torturam e matam tão livremente como num estado fascista saído de um filme de terror. Mesmo que a classe média, assustada e pronta para fechar seus olhos ao obvio, apoie as campanhas (até o histerismo) contra a imensidão da corrupção, não haverá democracia digna no país se não recusarmos três vergonhosos recordes brasileiros: o Brasil é o país que mais mata jovens, ambientalistas e jornalistas no mundo. Aqui, nesta terrível verdade, está o cerco da frustração e da humilhação de milhares de brasileiros que ao se dirigir a um policial temem por sua própria vida.


Os policiais também sofrem, em especial os jovens e honestos. Mas, o cerco ao grupamento policial feito pela população do Pavão-Pavãozinho nesta Páscoa de Copacabana nos mostra que a população, com ou sem a participação de traficantes, teme e, no limite, odeia a sua própria polícia “pacificadora”. Na verdade, todos hoje temem: a funcionária do banco, a secretaria do escritório, o comerciário e o estudante que andam nas ruas do centro do Rio de Janeiro temem. Temem por sua integridade, por seus bens e sua vida. A polícia, nos últimos quinze dias, desapareceu do caótico centro do Rio de Janeiro.


Segunda-feira, dia 14 de abril de 2014, 21:00hs, centro do Rio: da Praça XV de Novembro até a Praça Tiradentes, passando pela Rua da Assembleia, Rio Branco, Carioca, não havia sequer um PM, uma viatura, uma guarita policial funcionando. Bandos de jovens, na maioria menores, assaltavam e ameaçavam as pessoas saídas do trabalho e das escolas. Desde o dia 11 de abril, com recaída no dia 13 de abril, 1.650 policiais estavam mobilizados para retirar, com bombas e balas de borracha, os ocupantes do prédio abandonado da empresa “Oi” – localizado em terreno em disputa. Depois ocuparam as passagens de pedestres, de madrugada, quando os sem-teto aí se abrigaram e, por fim, numa bela Páscoa cristã, foram até pátio da Catedral do Rio de Janeiro, ocupado pelos desabrigados, e eis que surge a PM. Lá estavam retratando, filmando, espiando, reprimindo os sem-teto.


Enquanto isso, os cidadãos, aqueles que trabalham e estudam, estavam abandonados, em pânico, com medo, procurando os pontos de ônibus ambulantes criados pela Prefeitura.


Neste clima não há como se surpreender com duas realidades terríveis: de um lado, os motins (“riots”, para quem não entende o Brasil), cada vez mais frequentes e brutais e, de outro, a irrupção de grupos fascistas de “justiceiros”, substituindo a polícia, ocupada demais em garantir interesses de uma pequena elite.


A qualidade das instituições republicanas no Brasil morre aos poucos, com Amarildo, Dona Lucia e Douglas DG.


Pois é, Copacabana me engana!


Carta Maior


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