sexta-feira, 4 de abril de 2014

ANPR: A Lei da Anistia não nos serve


Alexandre Camanho de Assis: "É evidente, hoje, que a lei da anistia não nos serve"

Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) fala sobre os desafios da consolidação do Estado de Direito.

Fábio de Sá e Silva e Alexandra Martins


Criado pela Constituição de 1988, o Ministério Público tem atraído grande atenção dos estudiosos do sistema de justiça brasileiro. Dotado de poderes e atribuições singulares, o órgão se colocou como um dos principais representantes do “interesse público” a partir da promulgação da Carta. Isso traz oportunidades, mas também cria expectativas sociais.





Nesta entrevista à Carta Maior, Assis fala sobre como os membros do MPF têm lidado com esse quadro de transição, dedicando-se especialmente ao tema da lei da anistia.



Carta Maior: Gostaria de começar com uma questão mais geral. O ponto de partida de nossa cobertura desses 50 anos do Golpe tem sido o de que estamos diante de uma transição importante, mas incompleta. Qual a visão do Ministério Público e especialmente do movimento associativo, hoje liderado por você, sobre a transição para a democracia?



Alexandre Camanho de Assis: A Constituição de 1988 é o ápice de um movimento de libertação e marca a passagem do período da força para o período da democracia. Para o Ministério Público, ninguém duvida, foi um período muito fértil, o que decorre do reconhecimento da importância de se ter uma instituição como essa frente, exatamente, às questões que você coloca.



O Ministério Público brasileiro tem atribuições e responsabilidades que talvez não tenham paralelo em outros países. Mas isso tem uma razão de ser, é fruto de uma percepção coletiva e democrática, por ocasião da Constituinte, de que é preciso empoderar instituições que se destinem à promoção da justiça. O Brasil é um país que passou por um longo período no qual não se podia chamar a justiça de justiça. A Constituição de 1988 redimiu isso, criando uma instituição sem um mandato popular e sem vinculação ao cotidiano dos Estados, mas que se coloca a serviço da garantia da justiça para a população, algo que é imprescindível para o Estado de direito.



Carta Maior: Nós falávamos no início da lei da anistia e sabemos que há várias ações propostas por Procuradores da República, categoria que você representa, questionando a lei. Sabemos que cada Procurador tem sua autonomia, de modo que a propositura dessas ações não necessariamente decorre de uma política institucional. Porém, do ponto de vista do movimento associativo, imagino que deva haver um debate sobre essa questão. Estou correto? E qual a direção desse debate?



Alexandre Camanho de Assis: De fato no Ministério Público Federal cada colega é livre para ter as suas convicções e se deixar guiar por elas. Mas para além das convicções pessoais, há uma consciência entre os membros do Ministério Público de que eles estão a serviço da Constituição e da Democracia. Nesse sentido, nunca observamos resistência em relação às demandas por justiça de transição. Formou-se um grupo de colegas inicialmente ligados à área criminal, que recebeu aplauso senão unânime majoritário na instituição. Não houve uma voz que dissesse “Deixem isso em paz, esqueçam, pois a lei da anistia sepultou as possibilidades de persecução penal dessas pessoas”. Ninguém opôs resistência em relação aos colegas, o que entendo que foi muito significativo.



Carta Maior: Mas o STF já proferiu decisão a respeito em ação movida pela OAB. Qual a avaliação que vocês fazem daquela decisão?



Alexandre Camanho de Assis: Às vezes não nos damos conta de que o Estado é muito dinâmico. Vejo as pessoas falando, por exemplo, de tripartição de poderes como se fosse um dogma religioso, algo que tivesse uma forma fixa e permanente no tempo. Em um Ocidente que tem história de 2.500 anos, a tripartição de poderes é algo que tem cerca de 300 anos e já teve várias formas. Algumas coisas chegam, outras acabam; o curso do Estado não é um curso evolucionário como a vida biológica.



A lei da anistia foi um diploma que permitiu dar um passo rumo à democracia. Teve, assim, o seu momento de importância, como o Código Napoleão teve o seu momento de importância. Isso não quer dizer tenhamos que sacralizar uma coisa nem outra. A própria convivência democrática, a possibilidade de convivência com a justiça, o fato de a justiça voltar a ser uma coisa cotidiana trouxe, evidentemente, questionamento sobre aquela lei. É evidente, hoje, que ela não nos serve. É evidente que não nos serve.



Em algum momento, o STF, com uma determinada composição, entendeu que não era salutar questionar ou desautorizar uma lei que teve a sua importância histórica. Hoje, com o passar do tempo, com mais democracia, com mais Estado de Direito, com uma dinâmica internacional em que as ditaduras felizmente foram todas reprovadas e hoje um clamor internacional por uma resolução efetiva dos crimes cometidos nesses contextos, resistir à revisão da lei da anistia é uma ideia que se tornou arcaica.



Carta Maior: Em que sentidos?



Alexandre Camanho de Assis: Se algumas pessoas entendem que a lei da anistia foi fruto de um compromisso coletivo, hoje parece evidente que não foi esse o caso. As coisas foram postas nos termos de que “caminharemos para a democracia se essas coisas forem aceitas”, não havia como alguém dizer “não, caminharemos para a democracia, mas os militares precisam ser punidos nos seus excessos”. Não há como falar em compromisso se não havia margem de opção, a menos que se considere que manter-se sob o regime autoritário era uma opção.



Além disso, parece-me que o convívio com o Estado de Direito vai consolidando a ideia de que, por dispor que os crimes cometidos pelos militares “serão perdoados”, a lei da anistia é incompatível com o Estado de Direito. Não convive com o Estado de Direito a ideia de perdão a crime, que significa impunidade. O que um Estado de Direito quer é justiça, uma justiça objetiva, que avalie prova e que dê uma resposta proporcional. Temos então uma sociedade que, ao conviver com regras que asseguram ampla defesa, contraditório, uma série de coisas, passa a dizer “já não aceito mais isso”. Mas isso, obviamente, é o amadurecimento de uma mentalidade coletiva. Hoje não venham me dizer que os autores daqueles crimes estão perdoados, pois eu não posso aceitar isso. O Brasil é um Estado de Direito, não lidamos com esse perdão, que é uma forma de impunidade.



Sobre o entrevistado

Empossado em maio de 2012 como presidente da ANPR, Alexandre Camanho de Assis chefiava a Procuradoria Regional da República da 1ª Região. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), Assis também estudou na Academia de Direito Internacional de Haia (Holanda) e no Instituto de Relações Internacionais de Tessalônica (Grécia).

Aos 28 anos ingressou no MPF, atuando na esfera criminal e, mais tarde, voluntariando-se em causas relacionadas ao patrimônio cultural e meio ambiente, fazendo jus ao Prêmio Verde das Américas (2006). À frente da ANPR, Camanho diz pautar sua atuação pelo fortalecimento da integração entre o MPF e a sociedade civil.



Carta Maior




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